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ARTIGO: MONTE SANTO E O EPISÓDIO DE CANUDOS

A cidade de Monte Santo, situada no semiárido baiano, à sombra da Serra do Piquaraçá, foi, no passado, palco do episódio de Canudos. Tornado vila em 1837, o lugarejo detinha uma área territorial que abarcava grande parte do sertão baiano, incluindo Canudos, povoação fundada às margens do rio Vazabarris pelo peregrino cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, ou Antônio Conselheiro.

Em 1888, o coronel Durval Vieira de Aguiar, no seu livro Descrições Práticas da Província da Bahia, informava ter visto Antônio Conselheiro em terras de Monte Santo, mais precisamente no povoado do Cumbe, atual Euclides da Cunha (BA). Escreveu Durval Vieira de Aguiar: “Quando por ali passamos achava-se na povoação um célebre Conselheiro, sujeito baixo, moreno acaboclado, de barbas e cabelos pretos e crescidos, vestido de camisolão azul, morando sozinho em uma desmobiliada casa, onde se apinhavam as beatas e afluíam os presentes, com os quais se alimentava (...) O povo costuma fluir em massa, aos atos religiosos do Conselheiro, cujo aceno cegamente obedece (...) Nessa ocasião havia o Conselheiro concluído a edificação de uma elegante igreja no Mucambo, e estava construindo uma excelente igreja no Cumbe, onde a par do movimento do povo, mantinha ele admirável paz”...

ARTIGO - A CAATINGA E SEUS MUITOS ENCANTOS

Ao se deparar pela primeira vez com a caatinga, espanta-se Euclides da Cunha com aquela “flora inteiramente estranha e impressionadora capaz de assombrar ao mais experimentado botânico”. Chega a ser contundente: “é uma flora agressiva”. Depois emenda: “agressiva para os que a desconhecem — ela é providencial para o sertanejo”.

A caatinga é mais que uma vegetação, é um templo. E o sertanejo tem com ela uma relação mais que amorosa: espiritual. Relação de devoção mesmo. Não há sertanejo que não venere a caatinga como se fosse esta uma coisa sagrada. Ela é quase indizível, imperscrutável. Somente os que com ela convivem são capazes de decifrá-la em plenitude. Nela coexistem valores que só o sertanejo é capaz de captar. A caatinga é uma questão de identidade. De espírito. De consciência. Não basta nela conviver. É preciso vivê-la, senti-la, penetrar sua essência. Beber sua seiva sagrada...

ARTIGO - 70 ANOS DA “GEOGRAFIA DA FOME”

O drama da fome está presente em obras importantes da literatura brasileira, em especial aquela produzida por intelectuais nordestinos. Em algumas obras, o tema chegou a inspirar cenas que, por sua força e dramaticidade, tornar-se-iam verdadeiramente antológicas:

Em “O quinze”, de Raquel de Queiroz, o personagem Chico Bento, após esfolar uma cabra que encontra pelo caminho, e estando cego de fome, leva à boca os dedos sujos de sangue, comprazendo-se no “gosto amargo da vida”. No romance “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, a cachorra Baleia, há dias esfomeada, sonha com um mundo povoado por muitos e gordos preás. Em “A bagaceira”, de José Américo de Almeida, João Troculho, em diálogo com Lúcio, revela seu maior desejo: “comer até matar a vontade”...

ARTIGO - “ESPANTALHO DE AÇO”

As marcas da Guerra de Canudos ainda estão por toda parte, como que a denunciar a terrível carnificina que se abateu sobre o sertão nordestino, no fim do século XIX, ceifando a vida de milhares de brasileiros, entre sertanejos e integrantes das forças militares. Dentre os numerosos vestígios concernentes a tal episódio, há que se destacar o famigerado canhão Withworth 32, utilizado para varrer do mapa a cidade sagrada de Antônio Conselheiro. Oriundo da indústria alemã, o Withworth 32 era uma geringonça de 1,7 tonelada, que precisava de 20 juntas de bois para ser puxada. Os sertanejos apelidaram-no de "matadeira". 

A condução dessa poderosa máquina de guerra até os sertões da Bahia afigurou-se tremendo erro de estratégia por parte dos militares, visto tratar-se a mesma de peça excessivamente pesada e, por conseguinte, inapropriada para solos acidentados, como aqueles em que se desenrolou o conflito armado entre o exército brasileiro e os adeptos de Antônio Conselheiro. Tratava-se de um artefato de uso da marinha do Brasil, que acabou incluído no rol de armamentos destinados à guerra de Canudos.

Sobre ele escreve Euclides da Cunha, em "Os sertões": “a pesada máquina, feita para a quietude das fortalezas costeiras era o entupimento dos caminhos, a redução da marcha, a perturbação das viaturas, um trambolho a qualquer deslocação vertiginosa de manobras”. E arremata: “Era preciso, porém, assustar os sertões com o monstruoso espantalho de aço.”

“Era dificílimo acertar o alvo com esse canhão. A balística exigia cálculos a cada tiro, havia mais de um engenheiro para cada canhão”, afirma o escritor Godofredo de Oliveira Neto, sobrinho neto do general Mesquita, oficial na guerra de Canudos.

No dia 29 de junho de 1897, durante intenso canhoneio, o Withworth 32 sofreu uma grande explosão, provocando a morte de dois oficiais do exército: o médico Alfredo Gama e o 2º tenente Odilon Coriolano. A peça estava posicionada no Alto da Favela, de onde tentava bombardear o povoado. Alguns historiadores defendem ter sido a explosão uma sabotagem dos canudenses, que se infiltraram nas tropas da quarta expedição, usando uniformes militares. 

Certa feita, Antônio Pajeú e Joaquim Macambira Filho formaram grupo com mais 10 combatentes para atacar o canhão. Todos foram mortos nessa heroica empreitada, restando apenas um para contar a história.

Abandonado pelas tropas no final da guerra, o Withworth 32 receberia, anos mais tarde, os cuidados do DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca), que o apoiou em imponente pedestal na área onde tivera lugar o conflito. Em 1940, recebeu a visita do ditador Getúlio Vargas, que cumpria agenda política na Canudos pós-conselheirista. 

Com a construção do açude  Cocorobó, nos anos sessenta, foi a lendária peça transportada para Salvador , ficando exposta no Museu do Unhão. Em 1983, foi removida para Monte Santo, onde permanece até hoje. Ali, na praça monsenhor Berênguer, divide espaço com mais dois importantes monumentos da história canudense: a estátua de Antônio Conselheiro e o busto do ministro da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt.

José Gonçalves do Nascimento
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ARTIGO: EUCLIDES 150

No dia 20 de janeiro deste ano, o jornal o Estado de São Paulo publicou, em caderno especial, longa reportagem sobre os 150 anos de nascimento de Euclides da Cunha. Trata-se, sem dúvida, da primeira de uma série de outras tantas publicações que, em 2016, haverão de homenagear o escritor nascido em Cantagalo, antiga província do Rio, em 20 de janeiro de 1866.

E não é para menos. Engenheiro, poeta, escritor, jornalista, Euclides da Cunha é um dos mais legítimos representantes da inteligência brasileira. Intelectual de escol, foi ele responsável pela descoberta de um Brasil que até então era desconhecido: o Brasil do interior. Para ele, a construção da identidade nacional brasileira teria de buscar seus fundamentos na profundidade do Brasil interiorano, pois era lá que estava “o cerne da nacionalidade”...

A FEIRA LIVRE DO NORDESTE COMO EXPRESSÃO DA CULTURA POPULAR

A canção “A feira de Caruaru”, composta por Onildo Almeida e interpretada pelo imortal Rei do Baião, além de ser um clássico da música popular brasileira, é também uma bela e justa homenagem a uma das mais autênticas manifestações da cultura do Nordeste: a feira livre. Tomando como referência a Caruaru dos grandes são joões e do Mestre Vitalino, a moda em destaque mostra o quão é rica e diversa a feira livre do Nordeste.

A feira é, por excelência, o lugar da diversidade. Nela se vende, se compra, se troca. Em cima de esteiras, de caixotes, ou expostos em pequenas bancas cobertas de lona, são ali oferecidos os mais diferentes gêneros e produtos, desde alimentos, vestuários, até utensílios de cozinha e ferramentas de trabalho; a feira possui sua culinária, seu modo de vestir, sua linguagem; na feira se come, se bebe, se embriaga, se cai, se levanta; na feira se canta, se dança, se contam histórias, se rememoram fatos; na feira se celebra o encontro, o ajuntamento, a roda de amigos em torno da boa “cana; na feira, arranjam-se namoros, encontram-se amantes, terminam-se casamentos; a feira é celebração, é acontecimento, é festa (a própria etimologia já o indica: “dia de festa”); é a quebra da rotina e da “mesmice” que marcam o cotidiano. 

A feira é também lugar de comunicação. Por ali circulam de boca em boca informações a respeito de quase tudo: a chuva que caiu alhures; a vaca do amigo que deu boa cria; a comadre fulana que partiu dessa pra melhor; a filha do sicrano que fugiu com um marmanjo há pouco chegado de São Paulo; a mulher que chifrou o marido com o filho do vizinho; a guerra que estourou longe dali; o deputado que roubou lá pras bandas da capital; o prefeito que fraudou as urnas a fim de ganhar a eleição; o padre que deu em cima da catequista da paróquia. 

É na feira que os artesãos expõem seus produtos e os artistas populares mostram a força do seu talento. Quando eu era adolescente, não me cansava de parar para ouvir os cantadores de ABC, poetas populares que percorriam as feiras do Nordeste comercializando seus folhetos de cordel. Aliás, veio daí minha paixão por esse gênero de poesia. Sempre admirei as feiras livres, em especial a de Monte Santo, meu torrão de origem. Achava bonito o desfilar dos caminhões paus-de-arara, que dos quatro cantos chegavam apinhados de pessoas a conduzirem suas mercadorias. Encantava-me com os vendedores de pomadas e cascas de pau, a divertirem o público com seus ousados ventríloquos, que falavam e contavam piadas como se fossem gente. Adorava os bolos, manuês e arroz doce servidos quentinhos, ainda fumaçando. Para mim, a feira era sempre uma festa, sendo rara a semana que não a frequentava. Chegava de manhã, no começo, e saía à tardinha, já no final. 

A feira quebra barreira, estreita laços, estabelece convivência. Ali cada um é tratado pelo nome (Zé, Maria, João, Zefinha), como se fora um ambiente familiar. Ao freguês, é facultado experimentar o produto, sem que isso gere qualquer compromisso. Sem a rigidez das leis do Mercado, os preços ali são flexíveis e estão sempre sujeitos à pechincha do consumidor. Dependendo da lábia e do choro do comprador, uma dúzia deixa de ser doze para ser quinze unidades. O lucro é importante, mas “agradar” o freguês torna-se mais importante ainda.

Muitas cidades operam o tempo todo quase que em função da feira, dela recebendo todas as influências possíveis. O intercâmbio com pessoas de outras procedências, algo inevitável, acaba sempre acrescentando elementos novos à vida local. Aliás, a troca de experiências entre pessoas e grupos diferentes será sempre um traço marcante quando o assunto for feira livre. Assim surgiram e se desenvolveram muitas das feiras do Nordeste – região historicamente cortada por peregrinos, mercadores e viajantes. É sabido que antigos pousos de tropeiros transformaram-se em feiras livres e, estas por sua vez, deram origem a muitos dos atuais centros populacionais. Outros grupos sociais também tiveram participação na construção desse patrimônio da cultura brasileira. Dentre eles, há de se mencionar negros, índios, retirantes, beatos, cangaceiros, adivinhos, feiticeiros, poetas, prostitutas, mendigos, cachaceiros... cada um emprestando sua concepção acerca do mundo, das coisas e das pessoas.

Importante fator de geração de renda, o que já é bastante significativo, haja vista as condições sociais e econômicas da maioria das cidades nordestinas, a feira representa também a ocupação do espaço urbano como lugar de encontro. No momento em que os modernos meios de comunicação, caso das redes sociais, ou a adoção de determinadas medidas de segurança, tendem a afastar as pessoas do convívio social, a rua é reclamada como espaço de socialização, de confraternização e de troca de experiências. E a feira livre desempenha esse papel.

A feira livre resistiu a todas as transformações por que passou o mundo ao longo dos séculos, chegando aos nossos dias com toda a força simbólica que lhe é característica – não obstante o advento dos novos expedientes comerciais, a exemplo dos quilométricos hipermercados e das agilíssimas compras virtuais. Como sabiamente salientou alguém, “a feira livre é como uma filha rebelde da modernidade que insiste em desafiá-la”.

É necessário, porém, que haja uma sólida política de preservação da feira livre. Há de se empreender amplo trabalho de conscientização da sociedade acerca do papel da feira enquanto expressão das culturas locais, não permitindo que novos modelos desfigurem seu formato original. Formato que vai desde o dia e horário do evento, até a espontaneidade com que os feirantes expõem seus produtos, não tendo de se submeterem aos “padronismos” das modernas formas de comércio. 

José Gonçalves do Nascimento

Poeta e cronista..