O que salvou as quatro crianças que sobreviveram na selva amazônica colombiana por 40 dias não foi um milagre, mas sim "a força do conhecimento e da sabedoria ancestral" do povo hitoto, afirma a brasileira Vanda Witoto.
Ela é líder indígena do povo witoto, etnia da qual fazem parte os irmãos resgatados após a queda do avião em que viajavam - na Colômbia, a etnia é comumente chada de hitoto.
Vanda considera os hitoto da Colômbia seus "parentes", apesar da distância. De origem colombiana, a etnia está no Brasil desde a década de 1930, quando os indígenas fugiram das perseguições no país vizinho.
Vanda conta que seus bisavós estavam entre os que deixaram o território original do povo para trás. "Mas ainda nos vemos como parentes, pois a fronteira não cortou nossos laços", diz.
A técnica de enfermagem é professora voluntária na comunidade Parque das Tribos, em Manaus, e afirma que a autonomia, o conhecimento sobre o manejo da floresta e a busca por alimentos na selva são ensinados às crianças indígenas desde muito cedo por meio do convívio em comunidade.
"A educação se dá no cotidiano e na observação dos fazeres dos mais velhos. Desde cedo, as crianças são levadas para a roça e aprendem como cuidar e manejar a natureza, quais folhas, frutas e raízes podem comer ou como procurar rios, pescar e confeccionar instrumentos básicos", diz a líder indígena.
"Por isso, não consideramos um milagre a sobrevivência das crianças hitoto na Colômbia. Foi a força da espiritualidade, do conhecimento e da sabedoria ancestral do nosso povo que as manteve vivas."
Os irmãos de 14, 9, 4 e um ano sobreviveram à queda do avião de pequeno porte em que viajavam com a mãe e outros dois adultos em 1º de maio.
Todos os adultos morreram e eles ficaram sozinhos na selva até a última sexta-feira (9/6), quando foram encontrados pelo Exército após uma intensa busca.
Segundo Vanda Witoto, em sua cultura, a transmissão de conhecimentos não acontece na escola tradicional, mas na convivência com os pais e avós e com a natureza. "Por isso é tão importante garantir o direito à terra", diz.
"Se hoje temos a condição de continuar existindo mesmo diante de toda a violência estrutural que enfrentamos, não só no Brasil, mas em toda a América, é por conta da força da nossa relação com a floresta, com os rios e com a terra."
Como professora voluntária no bairro indígena Parque das Tribos, Vanda afirma que trabalha a preservação da cultura e da sabedoria ancestral.
"Nós indígenas costumamos ter muito baixa autoestima de ser quem somos por conta do preconceito. Então, trabalhamos a valorização da identidade indígena, das nossas línguas e história com as crianças", afirma.
Nativos da Colômbia, os witoto se deslocaram para o Peru e o Brasil para fugir da violência enfrentada em seu território original, advinda principalmente da exploração da borracha na região e da ação de guerrilhas como a extinta Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc).
A grafia do nome do povo varia conforme o país - na Colômbia são hitoto e no Peru, uitoto - mas os costumes mantidos pela etnia são os mesmos em todos os locais.
No Brasil, o povo witoto vive no Estado do Amazonas, principalmente no Alto Solimões, na região da tríplice fronteira com Peru e Colômbia.
A região abriga atualmente cerca de três aldeias com mais de 150 famílias, que vivem da caça, da pesca e do extrativismo.
Outros indígenas da etnia também vivem no Parque das Tribos, como é o caso de Vanda Witoto.
"Meus bisavós fugiram da Colômbia de canoa e se instalaram no Brasil", conta.
"Nós nos distanciamos do nosso território ancestral, mas, em 2021, fizemos o primeiro encontro entre os witoto do Brasil e da Colômbia em cem anos."
Vanda diz que a mãe das crianças, que morreu no acidente de avião na Colômbia, é parente de uma tia sua que vive em Bogotá, capital da Colômbia.
"Na verdade, dizemos que todos somos parentes, apesar de não compartilharmos necessariamente vínculos de sangue."
Vanda conta ainda que, durante as buscas pelas crianças na selva amazônica, todos do povo se juntaram em um movimento espiritual para que fossem encontradas.
"Os povos originários seguram o céu. Nós fazemos isso a partir das medicinas tradicionais, da espiritualidade e da relação com a floresta."
Correio Braziliense/Julian Brauns BBC Foto Arquivo Pessoal
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