Faz tanto tempo, mas eu recordo como se fosse anteontem. Era uma manhã belíssima. Em nome da natureza, o sol, normalmente escasso no mês de julho, parecia pedir desculpas aos recifenses pelas centenas de mortes e pela destruição, quando a cidade se afogou nas águas da cheia de 1975.
Tudo invertia a lógica do cotidiano. Remei um barco sobre a \Ponte da Capunga inundada. Famílias transferiam-se para o teto das casas, enquanto observavam o lento crescer do nível das águas da enchente. Cobras e peixes nadavam nas pias e banheiras das residências. Não havia água potável nem luz em muitos bairros do Recife, cidade afinal vencida pela cheia. Tanto desmantelo. Acreditei que o inferno era feito de homens insensatos e das águas revoltas dos rios. O Capibaribe e o Beberibe, nossos orgulhos, seriam também a nossa perdição.
Apesar disso, a cidade parecia silenciosa - de um silêncio quase tumular, que metia medo - exceto pelas sirenes de ambulâncias e das viaturas do Corpo de Bombeiros que tentavam cortar a cidade. As águas enlameadas formavam ondas nas ruas, provocadas pelo trafegar de algum caminhão. Tentei, mas não consegui chegar ao Diario de Pernambuco. Como repórter, restou-me enviar as informações por telefone.
Era uma época em que poucos edifícios possuíam geradores de energia para as emergências. Depois de um dia insano, tive que enfrentar 26 lances das escadas do prédio onde morava, no 13º andar. Suponho ser essa a razão pela qual, até hoje, o meu colesterol é regular.
Esses pensamentos pularam de alguma gaveta da memória ao ler a notícia de que o aumento da temperatura da Terra, a causar elevação do nível do mar, torna o Recife a principal capital brasileira afetada pelo avanço do oceano. A ONU informou que somos a 16ª cidade mais vulnerável do mundo diante do incremento do calor. O mal, agora, virá das águas do Atlântico.
Lembro-me da metáfora de Rubem Braga, que aqui viveu e trabalhou durante pouco tempo, despachado do Rio de Janeiro por Assis Chateaubriand, dono dos jornais associados, após algumas polêmicas com o então presidente Getúlio Vargas. Para o maior cronista brasileiro, o Recife é como “um prato raso”. E justifica: “A água é quase irmã da terra, beijando a flor das ruas, e as pontes quase se apoiam na massa líquida...”
É isto: o bem e o mal. Seremos a primeira capital do Brasil a fazer 500 anos, em 12 de março de 2037. A cidade, que começou pelo porto, foi povoada entre o mar, o mangue e o morro com forte e desordenada concentração urbana em pequena área territorial. Temos um problema sério decorrente da ação/omissão humana. A encrenca não é unicamente do Recife, mas do interesse de toda a humanidade. Segundo os pesquisadores, se houver um aumento da temperatura do planeta em 4º C, o mar invadirá terras ocupadas por 15% da população global, algo em torno de um bilhão de pessoas, a capital pernambucana no meio. O ambiente equilibrado é um direito das futuras gerações. Ou queremos os nossos netos remando barcos sobre as pontes?
Og Marques Fernandes: Ex-repórter do Diario de Pernambuco
Espaço Leitor
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