Na porta do inferno d’A Divina Comédia, de Dante Alighieri, está o aviso tenebroso: “Deixai toda a esperança, vós que entrais”. Em um lugar quase tão quente, a cidade de São Raimundo Nonato, a 521 quilômetros ao sul de Teresina, Piauí, a mesma frase em italiano, esculpida no portão de madeira, dá as boas-vindas a quem chega à casa da arqueóloga franco-brasileira Niéde Guidon. Segundo ela, a escolha dos dizeres, ali pintados com tinta vermelha, se deu por afinidade literária, apenas. Mas quem conhece Niéde, braba que só, sabe bem: pode ser também um recado aos visitantes indesejados ou, pior dos mundos, desesperança mesmo.
Niéde está cansada de lutar. Guardiã do maior tesouro arqueológico brasileiro, o Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, com seus registros da vida do homem pré-histórico, ela pensa em se aposentar. E isso pode ser um tremendo problema, já que Niéde não preparou um sucessor. Aos 84 anos, cabelos curtos e brancos, a arqueóloga tem o ar cansado de uma combatente experiente. É uma senhora que se move com dificuldade, mas que ainda preserva a fala firme. Nasceu em Jaú, interior de São Paulo, filha de pai francês e mãe brasileira...