Artigo: Meu nome é Saul e tenho uma história para contar

Colocaram um banco voltado para o coreto logo ali no lado mais próximo da Santa Casa. Por favor, camarada, sente aqui comigo. Tenho uma história para contar. 

Meu nome é Saul e das inúmeras coisas que fiz, de jogador do Veneza a Presidente da Liga Desportiva Juazeirense, de operário da Navegação a Presidente do Partido da União Trabalhista, poucas amei como a Sociedade dos Artistas Juazeirenses. 

Nós mesmos, lembro bem, por quatro anos, depois que naquele Natal de 1928 em que nos reunimos para criar a Sociedade Beneficente dos Artistas Juazeirenses,  construímos esse prédio. 

Meu amigo Jovino do Prado, engenheiro, dado a desenho e idéias mil, riscou a planta, do telhado ao alicerce e nos deu a medida exata do cimento e da pedra, da grossura das paredes e dos tijolos que trouxemos das olarias. Acompanhou nossas mãos, o dia a dia, os domingos e as cervejas e de quebra desenhou o pavilhão dos artistas. 

Meu camarada, irmão, Edgard Bandeira, mãos calejadas e sorriso feio. Um artista por inteiro. Ele mesmo mediu, cortou e entalhou a porta que abrimos no dia 01 de Maio de 1932. Quase quatro anos.  

De todos, pode ser que você não concorde camarada, mas o Doutor Edson Ribeiro foi de ajuda para não se medir. E poderia ficar aqui sentando, enquanto o sol está indo embora, relembrando nomes, Manuel Faustino, Hermínio Pereira, meus dois amigos Anísio e meu camarada Sabino, de fé e de partido, mas não é deles que quero falar. 

Quero falar de minha paixão, do resultado desses tijolos que colocamos um sobre o outro e destas telhas e das janelas. Da porta, sempre aberta e admirada. Quero falar do eco dos discursos de resistência e do seu salão apinhado, suado e vibrante.  

Descubro, camarada, que não construímos um prédio. Ao colocar tijolo por tijolo, gravamos neles nossas crenças, nossa história e nossa fé.  

Edson Ribeiro gravou a sua crença inabalável na necessidade de educar, Agostinho Muniz a sua absoluta certeza da vitória do proletariado,  Anísio gravou o som da música capaz espantar nossa tristeza e Manoel Faustino gravou todo o brilho de sua risada colossal. Ficaram nas paredes não apenas a tinta e o suor. Ficaram nas paredes nossos sonhos e a nossa certeza que este prédio seria também porto, encanto, encontro e ponto de união entre todos que querem bem a Juazeiro. 

Já vai a tarde se desmanchando nesse por do sol e tanto ainda há para falar, camarada. Dos golpes a que resistiu o prédio. Primeiro em 1937. A nuvem escura do fascismo e respondemos com a alegria das festas, com a criação da Filarmônica Primeiro de Maio. Resistimos ao golpe por oito anos com festa e carnaval.  

Você sabia, camarada, que foi lá que nos despedimos dos nossos pracinhas? E que lá nos os recebemos na volta quando triunfaram sobre os fascistas? Hermi bem poderia falar disso. Os discursos de nossos Primeiros de Maio e em 1964 o novo golpe.  

Respondemos com o silêncio. Oferecemos médicos e advogados a nossos camaradas, abrigados na Sociedade dos Artistas. Muccini quando voltou e Doutor José Araújo contribuíram e muito para que o prédio e sua vocação de amparar, reverberar e ampliar as vozes dos mais oprimidos e dos perseguidos pelo novo golpe continuasse viva. 

Alguma coisa está errada, camarada. Já não ouço o brado de resistência, já não vejo o brilho da fé e a força dos punhos fechados, erguidos em protesto. Já não ouço as marchinhas e nem o tilintar dos sorrisos das meninas de trás da banca.  

Os tempos tristes eu adivinho nesse pôr de sol que se embola em nuvens escuras e sei, camarada, como dói esta lágrima no seu olhar pela incapacidade de aquecer as pessoas com palavras de esperança. 

Há desencanto e nada mostra mais o desencanto (ou quem sabe o encanto, só que pelas moedas), que um telhado que desaba. Morre aqui, sufocado na poeira, não apenas um prédio. Morrem os sonhos, morrem as histórias e morrem de novo Edson, Agostinho, Anísio, Manoel e Manuel, Artur, Severo, Gabriel e tantos outros.  

Sobrevivem a injustiça e a maldade, a ganância e a falsidade, a mentira e o cinismo, tudo o que combatemos, não é mesmo Camarada?  

Não camarada, não há porta para fechar. Levaram.   

*Manoel Leão-jornalista
 

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