Covid-19: Um retrato das mães que são as principais responsáveis pelos filhos na pandemia

Um retrato das mães solo na pandemia, é uma uma reportagem da Revista AzMina. A revista AzMinas produz Jornalismo, tecnologia e informação contra o machismo.

AzMina é um instituto sem fins lucrativos que combate os diversos tipos de violência que atingem mulheres brasileiras. A Revista AzMina produz reportagens exclusivas sobre a situação da mulher no Brasil.

Confira:

Se antes a conta já não fechava para a gente, agora é ainda pior”. O desabafo de Fabiana Rodrigues da Silva, 35 anos, mãe de Alex, de 2 anos, ressoa nas mais de 11 milhões de mães solo no Brasil que vivem diariamente o impacto da pandemia causada pelo novo coronavírus, de acordo com dados levantados pelo IBGE em 2018. 

Mães solo são as mulheres que são as únicas ou principais responsáveis pela criança. Elas, que já viviam uma rotina muitas vezes de tripla jornada para dar conta da criação dos filhos, do trabalho e da casa, estão em uma situação de ainda mais vulnerabilidade devido à crise de saúde que assola o país e impõe o isolamento social como medida para tentar evitar a propagação da covid-19.

“Mesmo estando vulnerável à covid-19, não tenho nem a possibilidade de estar doente nesse momento. Eu trabalho e ganho por hora, além de estar sozinha com meu filho, por isso tenho muito medo de alguma coisa acontecer comigo porque não tem outra pessoa para ficar responsável por ele”, destaca Silva. “Ao mesmo tempo, não dá para parar. As necessidades do meu filho não param. Uma coisa é eu estar com fome e outra é meu filho. Como você fala para uma criança que não tem comida?”

Professora de dança, a mineira que mora há mais de dez anos em São Paulo viu todos os seus contratos de trabalho serem cancelados desde que foi decretado o isolamento social na capital paulista, no dia 24 de março. Sem contar com uma rede de apoio na cidade ou ter ajuda do pai da criança, ela teve que pedir dinheiro emprestado e depender de outras pessoas. Depois de 45 dias em isolamento social, recebeu a primeira parcela da Renda Emergencial Básica, que oferece um auxílio de R$ 1.200, por três meses, para mães sem cônjuge, o equivalente ao que uma família de dois adultos que estejam no trabalho informal recebe. De acordo com o Governo Federal, o pagamento do auxílio deve ser prorrogado por mais dois meses, mas ainda não há definição sobre o assunto e nem se o valor será mantido ou haverá redução.

“Nesses dez anos em que eu moro em São Paulo, sempre consegui sobreviver de dança, tinha um lugar de conforto por trabalhar com o que eu gosto e conseguir pagar minhas contas. Porém, quando parou tudo foi muito desesperador, porque eu não sabia como iria me manter e criar meu filho”, conta a mãe de Alex. 

egundo Thaiz Leão, co-coordenadora da Frente Parlamentar de Primeira Infância do Estado de São Paulo e Diretora Executiva do Instituto Casa Mãe, o isolamento, medida necessária em tempos de pandemia de covid-19, já era uma prática vivida pelas mães, principalmente as chefes de família. 

“As mães já sofrem com isso, porque a dimensão da infância e do compartilhamento social do cuidado dos filhos não existe. O que temos hoje é um agravamento, porque as poucas fontes de compartilhamento desse cuidado, como escola, o acesso ao trabalho e ao mundo, foram limitadas para essas mães para dentro da casa delas”, analisa Leão. “Os vínculos se quebram, a economia cai e o cuidado triplica. As crianças estão dentro de casa, e sabemos bem em quem recai essa responsabilidade, ainda mais no caso de mães solo, que já não têm com quem dividir essas demandas”.

Também designer e autora do livro “O exército de uma mulher só” (Editora Belas Letras), que mostra a sua história, desde o teste de farmácia até o parto do filho, Vicente, hoje com 6 anos, Leão afirma que existe uma grande distância entre o que se espera e se cobra da mães e a realidade que elas vivem: “A experiência que definimos hoje de maternidade é desumana, violenta, de solidão e sobrecarga. A questão agora não é nem mais segurar a curva, mas não cair do precipício, porque já estávamos na beirada antes mesmo de chegar o coronavírus”

Assim como a professora de dança Fabiana Rodrigues da Silva, a maioria das mães solo no país são negras (61%), segundo o IBGE. A raça dessas mulheres impõe ainda mais barreiras de acesso a direitos básicos que são agravados pela pandemia. No Brasil, 63% das casas chefiadas por mulheres negras estão abaixo da linha da pobreza, segundo a Síntese dos Indicadores Sociais, do IBGE. Em 2018, segundo o estudo, esse valor equivalia a aproximadamente R$ 145 mensais, por pessoa.

As mulheres negras enfrentam maior restrição a condições de moradia, saneamento básico e internet nos arranjos em que são as chefes da família. A proporção das mães negras solo com filhos é maior em relação às mães brancas em casas com ao menos uma inadequação, como a falta de banheiro exclusivo, construção feita com material não- durável ou mais de três moradores por quarto. Proporcionalmente, a cada 100 mães solo com filhos com menos de 14 anos, 4,6 mulheres negras não contam com um banheiro exclusivo – entre as mulheres brancas, a proporção cai para 1,4. 

A desigualdade racial também se reflete no acesso a saneamento básico e internet, já que 42% mulheres negras não contam com saneamento básico e 28% não têm internet, em comparação a 28% e 23% das mulheres brancas, respectivamente. Em meio a mudanças nas dinâmicas de trabalho, com preferência para trabalho em casa e chamadas de vídeo, a falta de conectividade impacta diretamente na fonte de renda dessas mulheres.

Mãe de Alex, Fabiana da Silva está nesse grupo de mulheres. Com o retorno de um de seus trabalhos, agora no formato home office, e das atividades do seu filho por meio virtual, ela enfrenta a falta de estrutura para trabalhar em casa, gravar vídeos e acessar o material escolar do filho, já que não tem internet própria em casa e teve o orçamento reduzido drasticamente.

Negra e lésbica, a graduanda de serviço social Dara Ribeiro é mãe de Aisha, de 11 anos, e conhece bem as vulnerabilidades das mães solo que enfrentam racismo e lesbofobia: “Acredito que ser mulher negra é resistir e ser resiliente. Não temos um minuto de paz, mas sempre seguimos. Quanto a ser sapatão, as pessoas nunca acreditaram na minha orientação sexual por eu ser mãe, e muitos homens não respeitam isso. Para mim, o mais importante é que meus filhos me respeitam”.

Natural de Santos, Ribeiro mora em São Paulo há 17 anos  e conta que sua rotina foi completamente impactada pelo novo coronavírus, já que tem que conciliar seus estudos, trabalho e as tarefas da escola de sua filha: “A pandemia é um agravante para nós mães solo. Tudo ficou mais sobrecarregado do que antes. Eu não perdi o emprego, mas meu contrato acaba em agosto e já é uma pressão a mais com que vou ter que lidar”, disse.

REDES DE APOIO: Além da sobrecarga e das dificuldades financeiras, um dos impactos da pandemia de covid-19 é na saúde mental das mães solo. Menos falado, mas muito presente, os efeitos psicológicos são importantes. A Organização das Nações Unidas (ONU) destacou a necessidade de aumentar urgentemente o investimento em serviços de saúde mental nesse período e pontua que “quem correm um risco particular são as mulheres, particularmente aquelas que estão fazendo malabarismos com a educação em casa e trabalhando em tarefas domésticas.”

Fabiana da Silva concorda e destaca a importância de poder contar com uma rede de apoio e ajuda psicológica: “Fazer parte de uma rede de mães que estão passando pela mesma situação faz você sentir que não está sozinha. Além disso, por meio da rede, consegui o acompanhamento com uma psicóloga preta, que é essencial para eu passar por esse momento”.

Ela faz parte do projeto “Segura na Curva das Mães”, idealizado pelo Instituto Casa Mãe e o Coletivo Massa, criado para identificar e localizar mães em situação de vulnerabilidade causada pela pandemia do novo coronavírus e garantir apoio emergencial para este grupo. A iniciativa oferece suporte emocional e financeiro a mulheres afetadas pelo isolamento social. Foram mapeadas mais de 700 mães em todo o país nesse contexto.

As redes de apoio, que se fortaleceram neste período para ajudar financeira e psicologicamente mulheres mais vulneráveis, tentam suprir parte das necessidades não cumpridas pelo Estado. Mesmo para as mulheres chefes de família que conseguem receber a Renda Emergencial Básica, o auxílio raramente é suficiente. Depois de quase quatro meses desde o primeiro caso de coronavírus registrado no Brasil e a marca de mais de um milhão de pessoas infectadas no país, os inúmeros desafios das mães solo nesta pandemia parecem longe do fim. 

Revista AzMina