A escravidão no Brasil durou cerca de 350 anos e arregimentou milhões de negros trazidos do continente africano. Só foi extinta quando não mais atendia aos interesses da burguesia europeia, em especial a inglesa, que, com o advento da industrialização, passou a cobrar o fim do trabalho servil.
O longo período de escravidão, seguido de uma abolição de araque (já que incompleta), mergulhou o país no obscurantismo, e deu lugar a uma herança maldita, cujos efeitos ainda se fazem sentir. A cultura escravagista, que reinou por mais de três séculos, não foi de todo abolida, e é ainda reverenciada por amplos setores da elite brasileira que insiste em dar as cartas, ciosa das benesses da casa-grande e saudosa do tempo em que moía negro no tronco.
O romance Shaira e a Saudade, de Sarah Correia, a ser lançado ainda este mês, se insere nesse contexto da história do Brasil. Como o zoom de uma fotografia, a autora põe em destaque o drama da menina Shaira, que, arrebatada do seio materno, na grande e longínqua África, é trazida para o Brasil a fim de servir como escrava.
O enredo tem como cenário principal uma fazenda do sertão do nordeste e se desenrola, basicamente, entre a senzala e a casa-grande, espaços onde, paradoxalmente, a personagem central vive os horrores da escravidão e, ao mesmo tempo, a experiência da liberdade.
Ricamente fundamentada, a narrativa mergulha no vastíssimo universo da cultura africana, interagindo com as diversas representações simbólicas, responsáveis por conferir significado à vida, e tudo que a envolve. Acertadamente, o texto destaca o papel da memória enquanto elemento constitutivo do processo de afirmação e consolidação das identidades individuais e coletivas, condição sine qua non – diríamos – para a efetivação das experiências de liberdade, autonomia e empoderamento.
É a memória, presente no cheiro da mãe, e atualizada nas imagens dos rios, das florestas, das montanhas, que faz com que a pequena Shaira esteja permanentemente conectada às suas origens, étnicas e familiares, e sonhe com a possibilidade de um dia poder reencontrar os seus.
Ao contar a saga de Shaira, a autora montessantense, efetivamente, acaba por contar também a história do Brasil. Não a história oficial: a história dos senhores, dos opressores, dos vencedores; mas a história real: a história dos humildes, dos excluídos, dos vencidos. Aliás, dentre os muitos méritos que a trama apresenta, está o de trazer à baila, de forma quase que pioneira, o tema dos milhares de negros que retornaram à África, uma vez alforriados. Ignorada pela historiografia convencional, a questão é praticamente desconhecida do grande público, restringindo-se a um ou outro historiador.
Numa perspectiva – ousaríamos dizer – gramsciana (de Antônio Gramsci) Sarah Correia traz pra sua literatura as figuras do povo, dos pobres, do oprimido, tratando-os – e isto é o mais importante – não como meros coadjuvantes, mas como atentos protagonistas, com poderes de fala e de decisão. Isso faz com que a autora se aproxime de figuras do naipe de Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Luís Gama (os dois últimos citados no corpo da obra), e tantos outros intelectuais que fizeram dos humildes a sua temática literária.
Não bastasse tudo isso, Shaira e a Saudade encanta ainda pelo vigor do seu texto – leve e consistente – e pela beleza da sua poesia – doce e revolucionária.
José Gonçalves do Nascimento..