No inesquecível trilhar de minha vida pública, na fase embrionária pelas terras do cacau, também conhecido como “alimento dos deuses” (Theobroma cacao) ou o fruto de ouro, fiz pisada duradoura no solo de Ilhéus, sede do 2º Batalhão de Polícia, cidade grapiúna cheia de encantos e magias, tradicional celeiro de mulatas tostadas pelo sol afrodisíaco que desfilam com faceirice e elegância pelo centro da cidade e nas belíssimas praias com saracoteio de “balaio roliço”, que balança mais que a proa de uma canoa em mar revolto.
Ilhéus é uma cidade que merecidamente Deus deu um cunho de beleza esculpida, além de um passado coroado de episódios, casos e fatos que marcaram sua história, narrados e citados por diversos escritores da região.
Os “coronéis do cacau”, senhores do poder de então, gravaram uma sucessão de fatos estarrecedores através de jagunços, clavinote, orgias e caxixes. Eles temiam as tocaias e os papos-amarelos, calibre 44. Fechavam o corpo para se livrar do inimigo comum por questão de terras. Faziam trabalho --- ebó --- com as respeitadas ialorixás Mãe Vandinha de Iansã e Mãe Roxalina, ambas moradoras do Alto da Conquista.
Ofertavam comida a Exu por intermédio das sacerdotisas de boa fama, fortíssimas na seita dos vodus, assim como Mãe Roxalina que, conforme se dizia à época, seus filhos eram conduzidos à escola por um Exu assentado em seu peji que os aguardava na Ponte Eduardo Catalhão, a que liga o centro da cidade ao bairro de Vitória da Conquista da cidade de Ilhéus.
Este modesto escriba foi, na realidade, um andejo oficial constante pelas bandas da “região do fruto de ouro”, pois cumpria missão em razão de seu ofício, visto que, aos vinte e dois anos, já ostentava a farda de tenente da briosa Polícia Militar, exercendo autoridade policial. Portanto, essas odisseias históricas nunca lhe foram estranhas.
Certa feita, na década dos anos sessenta, retornando de uma missão no extremo-sul do estado, cidade de Mucuri, fronteira com o estado do Espírito Santo, precisamente no período da quaresma, quarenta dias que vai da quarta-feira de Cinzas ao domingo de Ramos, quando a Igreja cobre os santos e o interior dos templos com pano roxo, houve um reboliço de pessoas em disparada atrás de um capiango --- gatuno --- que havia furtado nas Casas Pernambucanas, situada na Rua Dom Pedro II, hoje, Lojas Insinuante.
A Ilhéus nunca faltara casos inusitados, merecedores de registro: curiosos e funcionários das Casas Pernambucanas saíram em perseguição ao dono do alheio. Esse, contudo, era mais ligeiro que praga de padre, tendo alcançado a Praça Dom Eduardo com distância de mais de trinta metros de seus furiosos algozes e subido, como estivesse voando, às escadarias da Igreja da Catedral São Sebastião, padroeiro dos ilheense e protetor dos “meninos galãs” do Rola Murcha – CRM.
A porta da Catedral, para quem vinha inocente ao furto julgava ser missa campal ou preparativo para procissão quaresmal. De repente, aparece o delegado de polícia que, apressado, subiu às escadarias da Igreja, de arma em punho, um revólver 44, e passa pelo terremoto formado pela agitação dos curiosos e fiéis, bastante esbaforido, já pesado de dezenas de janeiros nos quartos, fuçando o interior da Igreja, semelhante a um cão policial bem adestrado.
No entanto, ao entrar na Sacristia, todo ansioso para demonstrar serviço e o grande feito de prender o capiango, deparou-se com um corpo coberto com pano roxo dentro da Sacristia. Incontinenti, deu voz de prisão, dizendo “Saia daí, seu: - impropérios bem ultrajantes - senão crivo suas pernas de balas! Pensou que iria escapar!? Aqui é o delegado da cidade e comigo malandro não tem vez!”
Ao tentar puxar o gatilho, o sacristão M. Ambrozinal Tupinambá segurou o revólver da autoridade e em voz alta disse-lhe que o corpo era de Jesus crucificado, que estava coberto de roxo porque estava no período da quaresma. Mesmo assim, a autoridade policial só se conformou quando o sacristão descobriu o rosto da imagem; o delegado, de logo deu um chilique, despencando tal qual jenipapo maduro sobre os paramentos de um Cura, recém-chegado da cidade de Buerarema que havia terminado uma celebração. O revolver desprendeu-se da mão da autoridade, dando sucessivas cabriolas no chão da Sacristia.
O delegado voltou à calma após ter tomado um copo com água benta e de joelho rezou um pai-nosso, suplicando perdão. O ladrão das Casas Pernambucanas jamais foi encontrado e no dia seguinte, o pecador pediu exoneração do cargo, tornando-se um baratão de igreja, assistindo às missas com freqüência. Falaram à época que ele se havia convertido, pois até então era evangélico!
Geraldo Dias de Andrade é Cel. PM/RR – Bel. em Direito – Membro da Academia Juazeirense de Letras – Escritor – Cronista – Membro da ABI/Seccional Norte.
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