Análise: Música e literatura explicam a cultura de violência policial no Brasil

Existe uma cultura de violência policial no Brasil que precisa ser estudada e combatida pelo próprio sistema de segurança, porém, isso se torna mais difícil porque foi banalizada. Encontra apoio em parte da população e se tornou uma bandeira eleitoral que levou ao poder políticos, como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Uma cultura diretamente relacionada ao passado escravocrata do país, como também acontece nos Estados Unidos, e que normatiza as relações entre a polícia e a população pobre das periferias. Negros e pardos são tratados como suspeitos, e não como cidadãos.

Um velho samba de 1938, de autoria de Tio Hélio e Nilton Campolino, cantado nos terreiros do Morro da Serrinha e de Madureira, berço do Império Serrano e da Portela, respectivamente, traduz a mentalidade policial da época, na voz de Zeca Pagodinho: "Delegado Chico Palha/ Sem alma, sem coração/ Não quer samba nem curimba/ Na sua jurisdição/ Ele não prendia/ Só batia/ Era um homem muito forte/ Com um gênio violento/ Acabava a festa a pau/ Ainda quebrava os instrumentos".

Caetano Veloso, na letra da música Haiti, retrata o mesmo fenômeno no carnaval baiano: "Quando você for convidado pra subir no adro/ Da fundação casa de Jorge Amado/ Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos/ Dando porrada na nuca de malandros pretos/ De ladrões mulatos e outros quase brancos/ Tratados como pretos/ Só pra mostrar aos outros quase pretos/ (E são quase todos pretos)/ Como é que pretos, pobres e mulatos/ E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados".

Essa cultura é registrada também na nossa literatura. Euclides da Cunha (1866-1909), por exemplo, na sua obra-prima, Os Sertões, narra os sangrentos acontecimentos da Guerra de Canudos (1896-1897). Euclides descreve o sertão nordestino (o relevo, a fauna, a flora e o clima), o homem (o sertanejo, o jagunço, o cangaceiro e o líder messiânico) e, finalmente, a luta (as quatro inglórias campanhas do Exército para destruir o pequeno arraial de 20 mil habitantes).

Foi a primeira vez em que a questão social no Brasil fora abordada com tanto realismo, mesmo considerando-se a campanha abolicionista, que fora consagrada pela Lei Áurea 14 anos antes. Foi uma guerra inglória, tendo como justificativa para o massacre de sertanejos uma suposta ameaça à consolidação do regime republicano, devido ao caráter sebastianista do movimento liderado pelo místico Antônio Conselheiro e seus jagunços.

"Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados" - descreve Os Sertões.

O homem descrito por Euclides da Cunha, que fez a cobertura jornalística da Guerra de Canudos como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo, quase 130 anos depois, vive nas periferias e favelas dos centros urbanos do país, seja na condição de trabalhador informal, a maioria, seja como traficante ou miliciano. A iniquidade social é a mesma. A diferença é que já não é possível resolver o problema à bala, como em Canudos, embora alguns continuem tentando.

Um fio de história em Abusado (2003), de Caco Barcellos, mostra a mesma iniquidade social que deu origem ao povoado de Canudos, no sertão baiano, presente no Morro Dona Marta, na encosta de Botafogo, no Rio de Janeiro. No lugar de Antônio Conselheiro, um líder messiânico, surge Marcinho VP, um traficante carioca. O soldado do tráfico é um jagunço urbano; os milicianos, a "volante" dos "coronéis". O mesmo homem que povoava os sertões nordestinos hoje habita as cidades brasileiras com igual resiliência.

Uma cena do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos, em que o soldado amarelo aplica uma surra humilhante e traumática no vaqueiro Fabiano, traduz a mesma situação em que um homem suspeito é atirado de uma ponte num córrego de São Paulo, na segunda-feira, ou uma senhora idosa também é espancada pelos policiais, dois dias depois, ao tentar impedir que o marido e o filho fossem surrados, depois de arrancados de dentro de casa. O soldado amarelo é um personagem antagonista que representa a opressão do poder institucional. Mostra a arbitrariedade do uso da farda, que lhe dá a condição de representante da Justiça, sem nenhum mérito para exercê-lo.

O vértice desse poder institucional, nesses dois casos, é o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que transformou essa cultura de violência policial na centralidade de sua política de segurança, por oportunismo ou convicção, e acabou na berlinda. Agora, diante da forte repercussão negativa das violações de direitos humanos pela Polícia Militar de São Paulo, admitiu que perdeu o controle da situação: tinha "uma visão equivocada" sobre o uso de câmeras corporais na farda dos policiais militares. "Hoje, estou completamente convencido de que é um instrumento de proteção da sociedade e do policial. E nós vamos não apenas manter, mas ampliar o programa. E tentar trazer o que tem de melhor em termos de tecnologia."

Será?

Luiz Carlos Azevedo-Correio Braziliense

Correio Braziliense Foto Fernando Frazão Agencia Brasil