Assisti o filme, Ainda estou aqui. Sala cinema lotado. O silêncio chamava atenção. Soluço de choro dava sentido a vida. Os especialistas afirmam que são duas horas angustiantes, mas indispensáveis para que, não nos permitamos, durante um segundo, imaginar reviver aqueles anos de Ditatura Militar.
Ainda Estou Aqui, tanto o livro quanto o filme, fala sobre o desaparecimento de Rubens Paiva, engenheiro civil e ex-político que foi sequestrado pela polícia durante o período da ditadura militar no Brasil.
Também chorei. Lembrei especialmente de meu avô, um dia eu perguntei o motivo dele ser cego de um olho. Desconversou mas anos quando fiz minha primeira filiação partidária, ele sorriu e disse: braços erguidos sempre e revelou os mínimos detalhes e rotinas, contou histórias, revelou felicidades, mágoas e os sentimentos.
Vi aquele homem que nunca chorava, detalhar o histórico discurso do tribuno Raymundo Asfora, pronunciado em 03 de abril de 1962, no Ponto Cem Reis, em João Pessoa, Paraíba, horas após o sepultamento do líder da Liga Camponesa de Sapé, João Pedro Teixeira, morto no dia anterior em embosca ordenada por usineiros/capitalistas.
Assim ouvi e aqui reproduzo:
“Um tiro franziu o azul da tarde e ensangüentou o peito de um agricultor. Foi assim que João Pedro morreu. Eu o vi morto no hospital de Sapé. Peguei na alça do seu caixão e, ao lado de outros companheiros e milhares de camponeses, levei-o ao cemitério. Estava com os olhos abertos. A morte não conseguiu fechar os olhos de João Pedro. Brilhavam numa expressão misteriosa e estranha, como se tivessem sido tocados por um clarão de eternidade. Os seus olhos, os olhos de João Pedro, estavam escancarados para a tarde.
E, dentro deles, eu vi – juro que eu vi – havia uma réstia verde que bem poderia ser saudade dos campos ou o fogo da esperança que não se apagara. Tinha sido avisado de que o perseguiam. Assistira, certa vez, ao lado da esposa, a uma ronda sinistra em torno do seu lar. Talvez soubesse tudo, mas aprendera, na poesia revolucionária do mundo, que é melhor morrer sabendo do que viver enganado.
Por que mataram João Pedro? Por que o trucidaram? E de emboscada? Mataram João Pedro porque ele havia sonhado com um mundo melhor para si e para os seus irmãos. Idealista puro, ele não compreendia nunca, na sua inteligência ágil e no seu raciocínio acertado, como todas as terras da Várzea do Paraíba pertenciam apenas a proprietários que poderia ser contados nos dedos de uma mão. E tantos homens sem terra e tantos homens aflitos e tantos homens com fome!
Sonhara com a reforma agrária. Mas, não pensava na revisão dos estatutos das glebas empunhando uma foice ou um bacamarte, na atitude dos desesperados. Apelava, apenas, para a organização da opinião campesina, da opinião dos campos, porque organizada a opinião do povo, tudo mais ficaria organizado.
O campo se priva de tudo para nos promover de tudo. Sem a enxada, que fecunda o ventre da terra, para a gravidez da semeadura e o parto da colheita, nada chegará às nossas mesas. A vida vem dos campos. Sem o suor, sem a fadiga dos campônios, jamais alcançaremos a fartura do povo, e a pobreza será cada vez mais infeliz e desamparada. Os latifundiários, todavia, na sua ganância, fingem desconhecer essa verdade, e na sua cupidez e na sua egolatria, negam aos pobres até o direito de ter fome. Fecham as suas propriedades ao cultivo, trazem-nas avaramente estagnadas, mandando matar aqueles que desejam transformá-las num instrumento de produção e de felicidade social. São tão mesquinhos, no seu egoísmo, que, na expressão de um ironista, deixariam o universo às escuras, se fosse proprietários do sol.
Eu vi João Pedro morto. Os seus olhos ainda estavam abertos. Eles tinham visto muito. Tinham visto quase tudo à sombra do Sobrado, povoado de Sapé, ouvira, talvez, contar na varanda de sua casa tosca, a história dos pais e dos avós que cultivaram aquelas terras. Sempre sob o regime do cambão, da terça e do cambito. Desse miserável cambão, dessa hedionda terça, desse desumano cambito, que deve ser varrido de nossa paisagem rural, nem que seja a golpes, nem que se a impacto das multidões revolucionárias nas praças.
Ouvira contar que, certa vez, o pai fora enxotado cruelmente, pelo capataz do amo, pelo simples fato de terem discutido sobre uma cuia de feijão. Sofria, ele próprio, as angústias daquele servilismo, doendo, agora, sobre o corpo exausto, com o suor da agonia que lhe escorria pela alma, fermentando, então, no íntimo, a convicção de que a dignidade humana não poderia ser tão aviltada. Urgia uma reação e João Pedro, à sombra do Sobrado, meditava e sonhava com um mundo melhor para os seus filhos. Eles não haveriam de amargar a mesma servidão. Sonhou. Haveria de pagar pelo crime de ter sonhado. O seu sonho era uma visão perigosa de liberdade. Os latifundiários não podem compreender que os corações dos humildes possam aninhar tão elevados sonhos. Contrataram sicários, armaram pistoleiros, puseram-se na tocaia. João Pedro deveria ser eliminado.
Acuso, perante o governo e a Paraíba, que há um sindicato da morte implantado na Várzea para ceifar a vida dos homens do campo. Ninguém se iluda: aquilo não foi mandado de um homem só. Todos devem se levantar em favor da luta dos camponeses. Todos, principalmente vós, pessoense, depositários da vida indômita da raça tabajara, para que, em face da violência e da opressão, os camponeses não se sintam desamparados.
Mataram João Pedro. Nunca mais poderei os seus olhos. Os olhos dos mortos não choram. Ele nos deixou, no transe derradeiro da vida, a dignidade final da sua morte. Sigamos o seu último exemplo. Ninguém derramará mais lágrimas. Os seus olhos queriam dizer que os camponeses, de tanto verterem suor, não têm, sequer pranto para derramar outras lágrimas.
É inútil matar sonhadores. Eles sempre viverão. Antes de morrer, João Pedro era apenas a silhueta de um homem no asfalto. Mas, agora, paraibanos, João Pedro virou zumbi, virou assombração. É uma sombra que se alonga pelos canaviais, que bate forte na porta das casas grandes e dos engenhos, que povoa a reunião dos poderosos, que grita na voz do vento dentro da noite, e pede justiça, e clama vingança. Que passeia pelas estradas de Sapé, que fala, pela boca de milhares de criaturas escravizadas, a mesma língua que, com a sua morte, não se perdeu porque a mensagem dos verdadeiros líderes não se esgota.
Meditemos profundamente na destruição de João Pedro, da tremenda cilada que armaram contra o inesquecível líder, na carga de ódio que caiu sobre si com o peso de um destino. Ele sofreu no próprio sangue a grave ameaça que existia contra todos nós. Que todos os patriotas dobrem o joelho diante do seu túmulo”.
Ney Vital é jornalista, colaborador da REDEGN, Técnico em Agroecologia e membro da Rede Brasileira de Jornalismo Ambiental
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