Quando foi avistado pela primeira vez, no dia 4 de outubro de 1501, pela expedição europeia comandada por Américo Vespúcio e ali mesmo batizado com nome do padroeiro daquele dia, São Francisco, certamente os expedicionários não imaginavam a sua grandeza. O maior rio inteiramente nacional, também é conhecido como rio da integração nacional e carinhosamente chamado por cerca de seus 20 milhões de habitantes como Velho Chico e Opará.
Ao comemorar dia (04), 523 anos, o Rio São Francisco que tem 168 afluentes, abrange 505 municípios dos estados de Minas Gerais, onde nasce na Serra da Canastra, Bahia, Pernambuco, Sergipe, Alagoas, além de Goiás e Brasília. O rio que percorre 2.863 km, correspondendo a 8% do território nacional até desaguar no Oceano Atlântico, é o 5º maior do Brasil e ao longo de cinco séculos tem muitos problemas acumulados que ameaçam severamente a sua existência. É o que afirmam os pesquisadores quando apontam que a vazão anual do cento-norte do Rio São Francisco diminuiu mais de 60%, em média, nas últimas três décadas. A pesquisa foi publicada pelo Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites (Lapis), no periódico internacional Water. O estudo ainda identificou a perda de 15% de cobertura vegetal na bacia hidrográfica no período de 2012 a 2020, quando ocorreu uma das secas mais longas registrada na história.
O presidente interino do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, Marcus Vinícius Polignano, destaca que hoje, embora, se deva celebrar o Rio, também é preciso um olhar atencioso e de constante preocupação. “A gente tem que celebrar a existência de um rio formado pela natureza, um dos mais extensos do país, um rio que caberia em muitos países da Europa e que foi fundamental para a ocupação do território brasileiro. Um rio que é um verdadeiro compêndio da história do Brasil e importante para a formação do povo brasileiro, onde ainda temos povos originários, quilombolas, ribeirinhos, uma diversidade de formações de povos extremamente rica, além do seu potencial com diversos biomas como a Mata Atlântica, Caatinga e Cerrado, áreas que mostram essa diversidade ambiental da bacia. Mas vale destacar que na formação do país ele foi também muito sugado. Hoje, grande parte das usinas estão na bacia do São Francisco que geram energia para o Sudeste. O Rio São Francisco é fundamental para processos de irrigação e mais recentemente tivemos a transposição levando água para a região norte e nordeste. Motivos para cuidar do rio não faltam, e a lógica ao longo desse tempo foi a do aproveitamento máximo do rio, tirar dele tudo que era possível e por outro outro lado, cada vez menos processos de mantê-lo vivo aconteceram, e agora, ao invés do rio chegar ao mar, na foz temos o mar invadindo o rio, ou seja, estamos perdendo rio e ganhando mar e isso não é uma boa lógica”, afirmou.
Estando na maior parte da região do Semiárido, este ano já foi identificada uma região de mais de 6km de área árida, localizada entre o norte da Bahia e a divisa com Pernambuco, entre os municípios de Juazeiro e Petrolina. A pressão gerada pelo aumento exponencial da população que vive na bacia hidrográfica, construção de hidrelétricas e pela transposição tem sido ainda maior com os impactos das mudanças climáticas. “Ao longo dos seus 500 anos se utilizou muito e cuidou-se pouco, o que tentamos, enquanto Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco, nessa tarefa árdua e nesse momento de crise climática. Vale destacar que a crise em si não é do clima, mas da civilização que propôs esses problemas através do modelo desproporcional à capacidade do próprio ambiente se recompor. Em uma analogia, é como se tivéssemos entrado no cheque especial há muito tempo e estamos renovando sabendo que não tem como pagar e em determinado momento a natureza cobra. Estamos em exaustão máxima do rio, sem um movimento sinérgico integrado, apesar das tentativas do Comitê de união em prol do rio. O momento, então, é de agir para que as gerações futuras usufruam desse rio; um direito transgeracional”, afirmou Polignano.
Filha de pescadores, Maria Cícera Bezerra de Lacerda, também pescadora e presidente da colônia de pescadores no município de Cabrobó, em Pernambuco, de onde parte o eixo norte da transposição, afirma que todas as comunidades têm sentido o rio cada vez mais fraco. “Temos mais de 500 pescadores só aqui na região de Cabrobó. Eu sou filha de pescadores e fomos criados, eu e meus cinco irmãos, por meio da pesca, e somos gratos ao rio São Francisco que banha nossa cidade, onde temos muitas comunidades que tiram seu sustento das águas, seja pela pesca, agricultura, navegação e turismo. Sempre que visito essas comunidades tenho o cuidado de falar sobre a importância da preservação e também falamos como seria se o rio deixasse de existir, e o que eu mais escuto dessas comunidades é que o rio não é mais o mesmo, que o Rio está morrendo e eles perceberam isso através das suas atividades, a pesca e a navegação. Com as mudanças climáticas também, a gente sabe que a pesca não é mais a mesma e quem vive da água percebe a diferença” afirmou Maria, reforçando o sentimento do pescador. “Se o rio morrer, eles dizem que morrem junto e eles não sabem o que fazer para evitar”.
O pesquisador Humberto Barbosa, meteorologista fundador do Laboratório Lapis e responsável pelo estudo sobre redução na vazão do São Francisco, destaca que os impactos na bacia têm inter-relação com as secas, degradação e aumento das queimadas. “Temos chamado atenção para o aumento na frequência e intensidade da seca, que potencializam as queimadas nos biomas brasileiros, provocadas pela ação humana”, e aponta que o principal motivo para o encolhimento do Rio São Francisco foram as altas temperaturas, principalmente no início dos eventos de secas-relâmpago. “Com as temperaturas mais altas, aumentam o uso diário da água pelas plantas e a evaporação dos corpos d’água. As ondas de calor extremo foram cruciais para reduzir o volume do Rio. À medida que fica mais quente, a atmosfera retira mais água das fontes da superfície e a principal consequência é que menos água flui para o Rio São Francisco”, ressalta. E alerta: “Deixar de agir para mitigar esses eventos climáticos extremos, reduzindo a degradação ambiental e outros fatores, significa aceitar o risco muito alto de que o Rio São Francisco continue a secar no futuro”.
A pesquisadora e geógrafa da Universidade de Pernambuco, Thaís Guimarães, ainda acrescenta um problema que pode agravar as condições de vida na bacia do São Francisco, que seria a escassez qualitativa da água. “Os eventos extremos, aumento das temperaturas e secas severas representam um risco para o rio São Francisco que pode sofrer com a diminuição da recarga dos aquíferos, perda da biodiversidade gerando o desequilíbrio dos ecossistemas, além do impacto na produção de alimentos. Além disso, também há outro fator importante a ser dito que é a escassez qualitativa, ou seja, a degradação da qualidade da água que, por exemplo, no caso da redução do fluxo do rio, favorece a salinização como já acontece na foz comprometendo a qualidade da água tanto para o consumo como para a irrigação. O aumento da poluição também incorre na incapacidade de o rio diluir esses organismos. Quer dizer, a preocupação com as secas severas e a escassez qualitativa são fatores associados à emergência climática que ainda pode provocar chuvas intensas com deslizamentos de margens e aceleração de processo erosivos”.
Ao longo dos últimos anos, o CBHSF tem investido em projetos e programas que visam a melhoria da qualidade e quantidade da água. As obras são financiadas pelo Comitê através da Agência Peixe Vivo, com recursos oriundos da cobrança pelo uso da água bruta na bacia do São Francisco. No entanto, o presidente interino do CBHSF enfatiza que o valor não é suficiente para sanar os problemas crescentes da bacia hidrográfica. “Para dar conta de uma bacia com mais de 600 km², o Comitê dispõe de um orçamento anual de apenas R$ 45 milhões. Como querer que o Comitê consiga reverter os problemas desse rio que está no ‘CTI’ com a falta de recursos necessários para oxigenar e torná-lo vivo? Agora, importante dizer também que nem tudo é dinheiro, existe o lado das políticas públicas que, se não pensadas para preservar os biomas, as áreas de recarga, isso não tem preço, mas tem custo. Precisamos de políticas públicas efetivas porque a natureza vai cobrar refletindo na sua incapacidade de responder nos momentos de crise, com menos água no rio, assoreamento, além da conta de energia com bandeira vermelha e todo mundo pagando caro”.
E o presidente interino finaliza: “Temos cenários que se somam em um sentido perverso onde o poder público não se contrapõe, ao contrário, ele legitima e intensifica o potencial devastador no descompacto entre a governança, a política e a economia. Já estamos em um cenário que o ambiente demonstra a sua incapacidade de responder a esse modelo de desenvolvimento, e não somos contrários ao desenvolvimento e à economia, mas gostaríamos que a ecologia fizesse parte da economia como sendo necessária e fundamental. Então, nesse dia temos que comemorar de forma comedida, entendendo que temos sempre que celebrar a vida e o rio São Francisco que é vida, onde o imaginamos grande, com vida, imaginamos abundância e é esse sonho que deve nos alimentar. Vamos celebrar, mas entender que cuidar dele é também uma responsabilidade de todos nós”, concluiu.
CHBSF Texto Juciana Cavalcante
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