Trecho Rio São Francisco aterrado e árvores centenárias derrubas é o retrato para construir extensão da Ferrovia, denuncia lideranças quilombolas

Reportagem do Eco Nordeste, destaca que São três quilômetros de concreto atravessando o que era um braço do Rio São Francisco no Território Quilombola Araçá/Volta, localizado no município de Bom Jesus da Lapa, Oeste da Bahia. A ponte integra os 1.527 quilômetros de extensão da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (Fiol) que está em construção desde 2010 e deve conectar o futuro Porto Sul, em Ilhéus, no litoral baiano, ao município de Figueirópolis, no Tocantins, onde se encontrará com a Ferrovia Norte-Sul. 

A obra, de responsabilidade da empresa pública Infra S.A, e o licenciamento da ponte estão suspensos pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e pela Justiça desde 2019, por não terem sido atendidas as regras de consulta às comunidades tradicionais. Araçá/Volta é um território quilombola de 19 mil hectares onde vivem 613 pessoas, vizinho de outros quatro (Lagoa do Peixe, Bebedouro, Batalhinha e Rio das Rãs), que juntos somam 70 mil hectares. Os quilombolas aguardam assinatura de acordo que garante recurso para a efetivação da regularização fundiária das terras.

As comunidades só ficaram sabendo deste gigante em seu território quando começaram a ver o trânsito de trabalhadores e máquinas na região, e então começaram uma luta árdua contra os impactos da obra. Em toda a extensão da ferrovia, outros 41 municípios da Bahia e do Tocantins serão diretamente impactados. 

A Fiol é uma infraestrutura pensada para oferecer uma logística de escoamento da produção de minérios do Sul da Bahia e de grãos do Oeste do Estado, região esta que integra o Matopiba. Denominado com as sílabas iniciais dos quatro estados que abrange –  Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia –, o Matopiba inclui 337 municípios e é apontado desde os anos 1980 como um celeiro mundial de commodities. Sobre a vegetação nativa e populações tradicionais desses três Estados do Nordeste e um do Norte avançam plantações de soja, milho e algodão.

O Matopiba tem 73 milhões de hectares em três biomas: Cerrado ( 66,5 milhões de hectares, o equivalente a 91% da área), Amazônia (5,3 milhões de hectares correspondentes a 7,3%) e Caatinga (1,2 milhão de hectares que ocupam 1,7%). Sendo reconhecida como área de franca expansão agropecuária pelo Governo Federal desde 2015, o Matopiba é uma porteira aberta para a devastação da Amazônia.

O presidente da Associação Quilombola Agropastoril de Araçá/Volta, Lucas Marcolino, acompanhou toda essa história e hoje é uma das principais pessoas à frente da luta pela mitigação e compensação dos prejuízos causados. “A ferrovia entrou invadindo o nosso território, derrubando árvores frutíferas e roças. Nós denunciamos para a Fundação Palmares e foi aí que começamos. Dissemos que a ferrovia até poderia passar, mas que não iríamos arcar com tudo sozinhos. Então, cobramos a regularização do território, enxergamos os problemas mas também as oportunidades”.

O território está às margens do Rio São Francisco, que compõe a identidade e o modo de vida local. Um dos principais impactos causados pela obra da ponte, além da destruição de áreas produtivas, foi o aterro de um braço de rio onde pescavam. Lucas também cita a derrubada de árvores centenárias e o fato de que o restante da estrutura a ser construída “vai criar um paredão de seis metros de altura no meio da comunidade” e afetar o fluxo de circulação dentro do próprio quilombo.

Enquanto a obra está parada, as comunidades lutam contra o tempo para conseguir o máximo possível de garantias e contrapartidas pelo que já sofreram e o que ainda vão sofrer. A fome de progresso é imbatível e Lucas já tenta prever o que pode acontecer quando o trem começar a passar. 

“O barulho, a vibração até mesmo na água, com impacto nos peixes. Os pescadores aqui já mudaram totalmente a sua rotina. Além disso, vem a pressão da especulação fundiária, porque uma infraestrutura dessas valoriza as terras. É difícil a gente dimensionar o que vai acontecer no futuro. Sabemos o seguinte: para fazer uma simples estrada aqui houve um pequeno aterro que já mudou a dinâmica das águas. Quando a gente fala isso para os técnicos dessa ponte, eles negam”.

Por não atender o estudo do componente quilombola, o licenciamento da ponte foi suspenso pelo Ibama em 2019 e a Justiça também determinou a paralisação da obra. Os trabalhos foram iniciados ignorando completamente o fato de que o território tem sua identidade quilombola certificada pela Fundação Palmares desde 2004 e reconhecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) desde 2023. A Instrução Normativa Nº 111/2021 do Incra estabelece procedimentos específicos a serem observados nos processos de licenciamento ambiental de obras, atividades ou empreendimentos que impactem terras quilombolas.

Atualmente, um acordo proposto pelo Ministério Público Federal (MPF) aguarda assinatura das hierarquias responsáveis na chefia da Infra S.A, no Ministério dos Transportes, e do Incra, no Ministério do Desenvolvimento Agrário. A ideia é regularizar a situação fundiária das terras quilombolas, inclusive com uma contrapartida financeira da Infra S.A para apoiar o Incra nesta tarefa. Confiraa reportagem na integra Aqui.

“Com isso, devolvemos a questão para os trilhos do procedimento correto, que deveria ter sido sempre feito, com o diálogo junto aos territórios, consulta prévia, livre e informada, e o componente quilombola no licenciamento ambiental, que não pode ser objeto de renúncia ou acordo, não tem como deixar de fazer isso. Estamos tentando ajustar o restante para que a obra só tenha continuidade com essas providências que consideramos necessárias para equilibrar os direitos dos envolvidos”, explica Rafael Guimarães, Procurador da República responsável pelo caso.

O Eco Nordeste