Reportagem especial: Saiba como as prefeituras de Juazeiro e Petrolina tratam o tema do Projeto de Lei que equipara o aborto ao homicídio

Um dos assuntos mais comentados nas redes sociais é a rapidez com que a Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (12) o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, que equipara o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, aumentando de dez para 20 anos a pena máxima para quem fizer o procedimento.

Os projetos com urgência podem ser votados diretamente no Plenário, sem passar antes pelas comissões da Câmara.

O texto fixa em 22 semanas de gestação o prazo máximo para abortos legais. Hoje em dia, a lei permite o aborto nos casos de estupro, de risco de vida à mulher e de anencefalia fetal (quando não há formação do cérebro do feto). Atualmente, não há no Código Penal um tempo máximo de gestação para o aborto legal.

O aborto não previsto em lei é punido com penas que variam de um a três anos, quando provocado pela gestante ou com seu consentimento, e de três a dez anos, quando quem provocar um aborto sem o consentimento da gestante. 

Caso o projeto seja aprovado, a pena máxima para esses casos passa a ser de 20 anos nos casos de abortos cometido acima das 22 semanas, igual a do homicídio simples previsto no artigo 121 do Código Penal.

A REDEGN foi ouvir avaliações sobre o tema. A Prefeitura de JuazeiRo através da Secretaria de Saúde (Sesau) informa que segue todas as leis e normativas do Ministério da Saúde que orientam sobre planejamento familiar.

A prefeitura de Petrolina também disse seguir as normas do Ministério da Saúde. A assessoria não respondeu se existe uma política pública voltada especificamente para o tema aborto.

A jornalista Erica Daiane, membro do Coletivo Enxame, avaliou que o "Projeto de Lei, de autoria de um homem, quer obrigar, por exemplo, uma criança ou uma mulher levar à frente uma gravidez, resultante de um estupro, isso é um absurdo. Somos a favor de um debate público, amplo, sem atropelos. Precisamos de políticas públicas de saúde para as mulheres em todas as esferas dos governos, isso sim é urgente".

Pelas redes sociais mulheres também criticam a proposta e cobram da esfera governamental Federal, Estadual e Municipal políticas públicas para as mulheres.

‘Esse Projeto é retroceder quase 100 anos". Entre 1º de janeiro e 13 de maio deste ano, foram feitas 7.887 denúncias de estupro de vulnerável ao serviço Disque Direitos Humanos (Disque 100). A média de denúncias nos primeiros 134 dias do ano foi de cerca de 60 casos por dia ou de dois registros por hora, conforme reportado pela Agência Brasil.

Para a ministra das mulheres, Cida Gonçalves, o projeto que equipara o aborto a crimes de homicídio pode agravar o cenário de casos de abuso infantil e gravidezes de meninas de 10 a 14 anos no Brasil. De acordo a ministra, dados do Sistema Único de Saúde revelam que, em média, 38 meninas de até 14 anos se tornam mães a cada dia no Brasil. Ao mesmo tempo, o país registra recorde de casos de estupro entre meninas.

“Esse cenário que irá se agravar ainda mais caso o projeto 1.904/2024 avance na Câmara dos Deputados, visto que o país vive uma epidemia de abuso sexual infantil”, afirma a ministra.

ENTENDA O PROJETO LEI: O projeto busca impedir qualquer aborto após 22 semanas de gestação, modificando o Código Penal. Atualmente, a lei brasileira permite o aborto em três situações: quando a gestação resulta de estupro, quando a gravidez representa risco à vida da mulher, e se o feto for anencéfalo.

A médica Ana Costa, diretora executiva do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes), critica o projeto, chamando-o de “uma reedição do ‘Estatuto do Estuprador'”. O Cebes destaca que o acesso tardio ao aborto legal reflete desigualdades na assistência à saúde, afetando principalmente crianças, mulheres pobres, pretas e moradoras da zona rural.

A campanha “Criança Não é Mãe”, formada por 18 entidades, caracteriza a proposta como o “PL da Gravidez Infantil”, argumentando que a alteração prejudicará principalmente crianças menores de 14 anos, que frequentemente não descobrem a gravidez cedo. A campanha alerta que a mudança na lei resultará na condenação de envolvidos no aborto por homicídio simples, com pena de prisão de até 20 anos, enquanto a pena para estupro é de cerca de 10 anos.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelou que 74.930 pessoas foram estupradas no Brasil em 2022, com 88,7% das vítimas sendo do sexo feminino e cerca de 60% com no máximo 13 anos de idade. Em 2019, o DataSUS registrou cerca de 70 abortos legais em crianças e adolescentes com menos de 14 anos.

Nos últimos dois anos, a aprovação de leis municipais ou estaduais com iniciativas para levar mulheres a abrir mão do direito ao aborto legal têm chamado a atenção de instituições que monitoram esse atendimento no Sistema Único de Saúde (SUS). Em Maceió, por exemplo, uma lei que obrigava mulheres nessas condições a verem a imagem do feto foi revogada pela Justiça de Alagoas, em 19 de janeiro de 2022, poucos dias depois de o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, sancionar a lei que criou a “campanha de conscientização contra o aborto para mulheres”.

Na avaliação de Júlia Rocha, coordenadora da organização não governamental de direitos humanos que publica desde 2018 o Mapa Aborto Legal, o surgimento de leis em estados e municípios em desacordo com a legislação federal impacta diretamente a garantia de direitos sexuais e reprodutivos.

No Brasil, esses direitos garantem o acesso ao aborto legal nos casos em que as gestantes foram vítimas de estupro, quando a gravidez representa risco à vida da mãe, ou ainda quando acontece a anencefalia fetal, uma má formação no sistema nervoso central que inviabiliza a vida do bebê durante a gestação ou 24 horas após o nascimento.

Júlia explica que, em todos os casos, as mulheres que buscam o aborto legal já estão muito vulnerabilizadas pela situação que a levou ao serviço de saúde para exercer seu direito e qualquer nova dificuldade acaba empurrando-as para os serviços clandestinos. “Se você cria barreiras municipais e estaduais ao aborto legal, nada impede que essas pessoas que estão buscando o serviço no SUS naquele município busque outra forma para acessar o direito e, assim, você cria novas formas de vulnerabilização.”

De acordo com Pesquisa Nacional do Aborto, que ouviu 2 mil mulheres em 125 municípios brasileiros, 6% das mulheres que declararam ter realizado o procedimento afirmaram ter passado por ele entre 12 e 14 anos. De acordo com Júlia, os diagnósticos do Mapa do Aborto Legal apontam que essa população é a que mais fica vulnerável quando um serviço de saúde deixa de acolher para o aborto legal.

A REDEGN não consegui contato com o Ministério da Saúde.

Redação redegn Foto redes sociais