Mais que um espetáculo, quadrilhas juninas unem moradores de comunidades e promovem transformação

Um dos mais emblemáticos espetáculos do São João de Pernambuco, as quadrilhas juninas não apenas encantam o público com os suntuosos espetáculos — ensaiados durante meses nas quadras de escolas de periferia.

Grandes protagonistas do arraial mais tradicional da capital, o Sítio Trindade, também atuam como importantes agentes sociais. As quadrilhas fortalecem laços comunitários e vão além da tradição festiva e expressão cultural, atuando como um poderoso agente de transformação social nas comunidades.

De acordo com Albemar Araújo, coordenador do concurso de quadrilhas Juninas da Prefeitura do Recife há 23 anos, apesar da simplicidade, as quadrilhas sempre contaram com um ecossistema autossuficiente. Cada membro contribui de alguma uma forma, promovendo inclusão, união e desenvolvimento social, criando verdadeiras comunidades independentes no movimento. 

“Há 23 anos não se tinha um profissionalismo tão grande, mas, aos poucos, eles foram vendo a necessidade de se aprimorarem e tratarem a quadrilha com mais profissionalismo, porém, mantendo a simplicidade. Com o autodidatismo, eles mesmos sempre fizeram tudo: a coreografia, os enredos, o figurino, tudo que aprenderam empiricamente. Com o tempo, passaram a transformar a formação que já possuíam de forma popular em acadêmica.”, explica o coordenador. 

Além de contribuir para o resultado do produto, esse ecossistema também funciona como um espaço de acolhimento, atraindo jovens, muitas vezes, em situação de risco, Ao criar uma espécie de família, como uma segunda casa, essas pessoas são acolhidas e encontram oportunidades que muitas vezes não conseguiriam ter fora daquela comunidade.  

“Quando os concursos de quadrilhas começaram,  esse sentimento de território e pertencimento àquela área era muito forte.  Hoje, essa questão se expandiu. Sai dos bairros para fazer parte de algo bem maior. E talvez as pessoas que fazem parte nem imaginem essa grandeza e expansão territorial”. 

E quando se fala em quadrilha, uma das mais tradicionais é a Origem Nordestina. Nascida em 1994, de uma promessa aos pés da santa, no Morro da Conceição, Zona Norte do Recife, foi a primeira a receber o título de patrimônio vivo do Recife.

Pioneira no enfrentamento a questões como racismo religioso e desigualdades de gênero e renda, a Origem também foi a primeira quadrilha a ter como presidenta e marcadora uma travesti, a fundadora Suelanny Carvalho, celebrando a diversidade como compromisso, lema e tema constante dos espetáculos.

“Eu nunca imaginei que conseguiríamos tudo isso. O que eu mais queria na vida era ter uma quadrilha no morro, algo para poder unir a comunidade. Eu disse a ela [a santa] que eu queria ter tudo que um bom quadrilheiro tem e chegamos até aqui. São 30 anos, e eu sou muito grata por tudo isso”, contou Suelanny. 

Assim como no pedido da fundadora, a Origem uniu realmente a comunidade do Morro.  Durante os anos, foi o palco do encontro de muitas pessoas, dentre elas o casal Cleyton Batista, mais conhecido como Buda, e Elaine Cristina, em 1998.  Eles se conheceram na quadrilha, casaram em 2000 e tiveram uma filha, Sarah Batista. 

 Em 1998, Buda e Elaine se conheceram dançando quadrilha. Se casaram em 2000 e tiveram uma filha, Sarah Batista. Buda e Elaine se conheceram na quadrilha, casaram em 2000 e tiveram uma filha, Sarah Batista.

Para a família, a quadrilha é mais do que uma tradição anual; é um estilo de vida que une gerações e fortalece os laços comunitários.

“Eu já participei de outros grupos, mas a origem, pra mim, tem uma ‘coisa’ diferente. Foi aqui que conheci minha esposa e construí minha família.”, afirma Buda.  

“Danço na origem desde 1998, quando conheci meu esposo. E apesar da rotina cansativa, para mim é muito gratificante. Somos um ajudando o outro. Quando vai chegando perto da estreia, também organizamos mutirões, para todo mundo ajudar a finalizar a roupa”, reforça Elaine. 

AMOR E TRADIÇÃO: Da paixão e companheirismo criados na Origem Nordestina, que cresceu tanto a ponto de não conseguir mais comportar a todos, também no Morro da Conceição, nasceu a Junina Tradição. Fundada por Maria Lúcia Freitas, mais conhecida como Dona Nena, costureira que há 20 anos é responsável pelo figurino da quadrilha. 

“Fizemos a Junina Tradição com o maior sacrifício do mundo, mas conseguimos botar ela na rua. Achávamos que não ia dar certo. A ideia era sair para brincar, não para ganhar. A gente queria se divertir. Mas no primeiro ano que saímos, conquistamos a vitória e fomos a melhor do ano”, relembra a matriarca. 

“De lá pra cá, não paramos mais e nos tornamos uma família. Todo mundo se ajuda e, para mim, todos são meus filhos. Quando alguém está passando por dificuldades, a gente ajuda. Com comida, passagem, roupas, adereços... Seguimos em frente assim: um ajudando o outro”, contou Dona Nena. 

A filha mais velha de Maria Lúcia, Ana Claudia Freitas, herdou a paixão da mãe e já compõe o corpo de quadrilheiros há 20 anos. Para ela, a quadrilha é um símbolo de união, inclusão e oportunidades.

“Para mim, eles são a minha segunda família. A comunidade abraça a quadrilha, porque é filha dela, do povo, da comunicação e aqui formamos vários profissionais. Nesses 20 anos, formamos também diversos profissionais que hoje estão em outros grupos, e em outros patamares”, disse a quadrilheira. 

Para o historiador, Joselito Costa, um dos coordenadores da Tradição, as quadrilhas celebram a individualidade, destacando-se como espaços culturais de acolhimento e expressão, onde a diversidade é não só aceita, mas enaltecida.

“A quadrilha acolhe as pessoas em sua diversidade, em sua pluralidade. É um grande sistema de cooperação mútua. Cada um, no seu lugar, do seu jeito, com sua habilidade, dá sua contribuição. É com a somatória dessas habilidades e expressões individuais que a gente faz a quadrilha”, explica o historiador. 

Ainda segundo Joselito, tudo é feito a partir de um processo chamado de iniciação profissional. O conhecimento adquirido por aqueles que se profissionalizaram é repassado para o coletivo, de geração a geração.

“Quando temos profissionais na quadrilha eles não detêm um conhecimento para si. Esses formam os demais integrantes, através de oficinas, para que essa as pessoas também possam se apropriar dessa técnica e isso faz com que o conhecimento não fique centralizado. Assim, ele vai sendo aprimorado, e é uma forma da gente disseminar o conhecimento que é construído coletivamente. E caso a pessoa permaneça na quadrilha, ela consegue encontrar um mercado de oportunidades lá fora”, ressalta Joselito. 

Um dos profissionais formados pela tradição é o projetista Anderson Gomes, que começou na Tradição aos 11 anos, como quadrilheiro. Após 9 anos dançando, em 2004, desenvolveu o primeiro projeto e hoje atua como projetista artístico em diversos estados do País . 

“Eu não imaginava que a quadrilha fosse ser uma profissão para mim, mas me levou a lugares que eu nunca imaginei que fosse. Eu trabalho aqui em Pernambuco, mas eu também desenvolvo o mesmo projeto em outros estados do Brasil. A quadrilha foi um porta-voz para que a minha arte aparecesse. Hoje, penso o que eu teria feito se não fosse a quadrilha”, conta Anderson. 

São João, de geração à geração
Seguindo a tradição do amor pelo São João sendo passado de geração a geração, a quadrilha Raio de Sol, por sua vez, também exemplifica o poder da paixão e da iniciativa individual em prol do coletivo. Criada em 1996 por Alana Nascimento, uma mãe apaixonada pela cultura nordestina, a quadrilha cresceu sob o olhar atento e dedicado da filha, Leila Nascimento, que atualmente é coreógrafa e responsável pelo grupo. 

“Quando criei a Raio de Sol nem sabia direito como fazer quadrilha, mas já sabia o que eu sentia, o que eu gostava. Eu gosto do meu pernambuco, das coisas da nossa terra. E, para mim, a quadrilha, além de ser uma segunda família,  é uma forma de manter a nossa cultura passá-la adiante para as próximas gerações”, conta Alana. 

Para Leila, que dança na quadrilha criada pela mãe desde que tinha 10 anos, a Raio de Sol a ajudou a crescer muito além da idade e do tamanho, mas em experiência, convivência e arte. 

 “O tema esse ano é a engrenagem que nos move, e tem tudo a ver com fazer quadrilha, porque ela é como engrenagem, né? Cada peça ali é fundamental para o todo funcionar. Também costumo dizer que a quadrilha é um pretexto. Para construir futuros, esperança, uma família, um vínculo, crescer profissionalmente, ou como pessoa, isso tudo é muito maior do que o espetáculo  que o público vê. A gente está aqui o ano inteiro, a vida inteira, fazendo quadrilha, fazendo arte, e reverberando isso para o mundo, para todo mundo que participa”, refletiu a quadrilheira. 

Uma das pessoas acolhida pela magia das quadrilhas, através da Raio de Sol, foi o brincante popular Matheus Pimentel. Devido a uma cirurgia mal sucedida nos tendões, Matheus perdeu os movimentos e parou de andar em 2011 e usa cadeira de rodas desde então. 

“Estar aqui,  vivenciando tudo isso, é de grande importância para mim, acredito que sou um ponto de partida para que outras pessoas com deficiência possam ser incluídas na arte. E isso a quadrilha tão bem. Esse brinquedo composto por pessoas de diversas culturas, sociedades e gêneros. E eu vejo isso como uma grande oportunidade para mostrarmos o que a gente pode fazer, e quem a gente pode ser”, conclui Matheus.

Folha PE