O Brasil foi atingido por mais uma tragédia no Rio Grande do Sul, que enfrenta sua quarta onda de clima extremo em menos de um ano.
Devo dizer que passei algum tempo refletindo sobre como abordar esse tema, especialmente considerando minhas pesquisas sobre impactos socioambientais e a forma sensacionalista como as tragédias comumente são tratadas.
Contudo, parece que, neste momento, nenhum outro assunto no Brasil é mais premente. Já que passamos os últimos dias entre seguir a rotina e testemunhar imagens terríveis, além das evacuações massivas e dos cortes de água e energia, os danos em infraestruturas-chave, como o aeroporto, que permanecerá paralisado até o final de maio.
Em meio ao caos, é a força social que emerge, manifestando-se com uma onda de solidariedade e nos apresentando saídas, inclusive para compreendermos que serão necessárias políticas distintas para reabilitar este território. E se a sociedade total só se realiza através dos territórios, como bem colocou Milton Santos, essa força social está intrinsecamente ligada à relação das pessoas com seu ambiente, com o território funcionando como a “base de operação da comunidade”. É essa mesma energia das massas em movimento, entrelaçadas numa teia de solidariedade e interdependência, que pode nos orientar na reconstrução do pensamento e da ação, mesmo em meio à tragédia.
Contudo, apesar da força social visível durante crises como esta, a percepção pública é de que as tragédias podem ser prevenidas. Uma pesquisa Genial/Quaest divulgada em 9 de maio revelou que a maioria dos brasileiros (70%) acredita que a tragédia no Rio Grande do Sul poderia ter sido evitada com obras e investimentos em infraestrutura. Apenas 30% acreditam que nada poderia ter sido feito, que seria inevitável. Isso mostra que, para a população, culpar exclusivamente às mudanças climáticas quando os governos não investem em prevenção não é suficiente.
As redes sociais também apareceram como um espaço comunitário e uma fonte importante de informações. Desde a semana passada, inúmeras pessoas afetadas têm recorrido às redes sociais para solicitar apoio, alertar os afetados, pedir socorro ou buscar informações de forma mais ágil. Os comentários dos moradores afetados, imagens e detalhes das ocorrências podem dar mais informações sobre as decisões a serem tomadas. Infelizmente, parte das autoridades demorou a perceber o tamanho do impacto e da tragédia nos 417 municípios afetados até este momento, e as informações eram desencontradas.
Enquanto isto, as geociências estão testemunhando em tempo real a importância do mapeamento colaborativo, do acesso aos geodados e da sua divulgação científica. Neste sentido, ficou evidente a necessidade de tornar a literacia cartográfica e dos dados cada vez mais acessível. Digo isto porque, acompanhando a página da Defesa Civil do Rio Grande do Sul deparei-me com uma postagem com mais de 502,8 mil visualizações, do dia 5 de maio, que direcionava para o Google Maps.
Esta postagem permitia que as populações verificassem se a região onde moram estava dentro da área prevista de risco. Nos comentários da publicação, não faltaram mensagens questionando se aquilo que estava demonstrado no mapa como área de risco considerava a topografia, se deviam sair de casa imediatamente, se o que estava assinalado em vermelho se referia a inundação efetiva ou uma previsão de uma área que iria inundar.
Fica claro que em uma situação de tragédia o preparo do estado na produção de mapas, e da população para interpretar os mapas é um fator a considerar no nível de risco e, desta forma, dois conceitos urgem ser estimulados: geocomunicar e geoalfabetizar.
Em uma escala local e pensando na realidade dos pequenos municípios, é preciso considerar as suas dificuldades em coletar, gerir e processar os geodados, agravado pelo número reduzido de técnicos municipais que trabalham nesse campo, e quando fazem, raramente é de forma exclusiva e integrados em equipes que pensam e comunicam o território.
No estado de São Paulo, identificamos uma escassa produção de dados geográficos municipais, uma situação comum em municípios de pequeno e médio porte por todo o país. No grupo de pesquisadores “Territórios em Transformação”, temos colaborado com alguns municípios do interior do estado na tentativa de suprir esses gargalos. Em parceria com a Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente (Anamma) e a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária da USP, produzimos um guia educativo sobre mapeamento participativo como um pontapé inicial para que os pequenos municípios possam coletar e trabalhar com seus próprios dados, fomentando o gosto pela produção e leitura cartográfica na rede de ensino local.
O Guia educativo cartografia participativa foi elaborado com base na experiência de trabalho do grupo de pesquisadores com o município de Capivari, que enfrenta inundações recorrentes, e tem a finalidade de ser uma ferramenta ao serviço de outros municípios que enfrentam desafios similares.
Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP
Jornal USP / Rádio Usp
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