Centenas de milhares de animais são resgatados nas obras da transposição de águas do Rio São Francisco, mas não haveria afogamentos nos canais graças a acompanhamento técnico e infraestrutura indicados no licenciamento. A grande maioria dos espécimes recolhidos foi solta em áreas preservadas.
As obras de transbordo do “rio da integração nacional” iniciaram em 2007. É um dos maiores projetos mundiais desse tipo. A água já corre pelos dois grandes eixos principais e no ramal do Agreste. Há obras e projetos de quatro ramais menores. Todos juntos somam cerca de 800 km de canais.
A presença e a movimentação de animais são registradas desde o início das obras, há 16 anos. No período, foram resgatados 235.321 animais silvestres, incluindo aves, mamíferos, répteis, aves e anfíbios. Nove em cada dez foram reabilitados e liberados em áreas preservadas, ou por volta de 212 mil vidas.
Para o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional (MIDR), os números mostram que alguns impactos do projeto foram reduzidos. Os outros cerca de 23,5 mil animais resgatados morreram durante desmatamento, feridos por maquinário e demais impactos.
“Há uma série de impactos à fauna conectados à transposição, incluindo dos levantamentos topográficos, movimento de veículos, desmate e até pessoas afugentando animais”, lembra José Cleidimário Araújo Leite, professor e pesquisador na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Ele acompanha a transposição há mais de duas décadas, desde os debates e desenhos iniciais do projeto. Leia na integra a reportagem de Aldem Bourscheit (oeco) jornalismo ambiental
Todavia, nesse universo de fauna silvestre impactada pelas obras federais de transbordo, teriam sido poucos os animais afogados nos canais da transposição. Especialistas que acompanham o empreendimento teriam removido apenas uma jiboia e uma capivara aprisionadas nos cursos d’água.
“Essas quantidades podem deixar dúvidas porque são dados apresentados pelos empreendedores dos projetos, mas sem dúvida o resgate e a reabilitação dos animais são das medidas mais importantes para reduzir impactos à fauna silvestre”, destaca Araújo Leite.
Coordenador-geral do Centro de Conservação e Manejo de Fauna da Caatinga (Cemafauna) da Universidade do Vale do São Francisco (UNIVASF), o professor Luiz Cezar Pereira avalia que a baixa mortalidade no canais se deve à infraestrutura e monitoramento adotados no licenciamento do projeto.
“Trechos forrados com pedras e uma grande maioria de canais com mantas de borracha sob a alvenaria (foto inicial) permitem a saída dos espécimes. Também há túneis para passagem dos animais e equipes monitoram os impactos desde o começo das obras”, lista o pesquisador.
O Cemafauna é um time de pesquisadores sobre fauna nordestina focado em detalhar, resgatar e monitorar semanalmente animais nativos nas áreas de influência direta e indireta do “Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias do Nordeste Setentrional (PISF)”.
Além disso, debaixo dos eixos da transposição há mais de 200 túneis aproveitados por tatus, onças-pardas, guaxinins, felinos e outras espécies de répteis, anfíbios, mamíferos e insetos. “São medidas importantes para não bloquear o fluxo gênico”, destaca Pereira.
“Manter as passagens livres reduz a chance de que animais tentem cruzar os canais. Também é possível implantar cercas adequadas ao tamanho das espécies em locais de maior concentração de fauna, de maior potencial desses acidentes”, agrega Araújo Leite (UFCG).
Como revelamos em setembro, no oeste da Bahia lobos-guará e outras espécies do Cerrado morrem em canais de irrigação forrados com plástico e sem medidas sérias para proteger a fauna. As precárias e escorregadias estruturas impedem a saída dos animais, que agonizam até a morte.
Uma faixa de 2,5 km ao longo de cada margem dos canais da transposição foi desapropriada por “utilidade pública”. Conforme Pereira (UNIVASF), o desmate nessas zonas procurou conter danos à fauna da Caatinga. Primeiro foram usadas foices, depois motosserras e só adiante o maquinário pesado.
“Ninhos eram realocados em locais não muito distantes e de vegetação similar. Também eram identificadas tocas e outros abrigos de animais para seu possível resgate e liberação em áreas preservadas”, conta o coordenador-geral do Cemafauna.
Mais 200 pessoas monitoravam os impactos ambientais na fase de obras mais intensas da transposição. Hoje as equipes somam cerca de 120 pesquisadores, analistas e especialistas, apoiados por carros, barcos e outros equipamentos. O trabalho segue custeado pelo Governo Federal.
O esforço pretende igualmente revelar como cursos perenes de água afetarão os sistemas naturais de uma região historicamente marcada pela escassez do recurso. Garças e outras aves aquáticas passaram a frequentar canais e reservatórios ao longo dos eixos e ramais da transposição.
Mudanças no comportamento de insetos, mamíferos, répteis, anfíbios e aves – incluindo migratórias – são comparadas com as em áreas inalteradas da Caatinga. “Impactos positivos e negativos têm que ser avaliados junto à evolução ambiental do bioma”, pontua Pereira (UNIVASF).
Os peixes têm atenção especial dos pesquisadores. Para abastecer comunidades no semiárido, a água agora corre firme por alguns rios antes intermitentes. Nesses cursos, espécies de peixes-das-nuvens, cujos ovos eclodem a cada ciclo de chuvas, podem estar ameaçadas.
Outro risco é o de que peixes do São Francisco povoem cursos d’água no interior da Caatinga. Estudos científicos encontraram 3 espécies da área onde é captada água da transposição em outros pontos do bioma. Se os animais se adaptarem, os ambientes podem ser invadidos e outros peixes prejudicados.
“A fauna aquática pode ser atingida em escala crescente porque a transposição entre bacias distintas mudará a química, a física e a temperatura das águas”, agrega Araújo Leite (UFCG). Ele acompanha o projeto há mais de duas décadas.
Os impactos reais e potenciais da transposição pedem vigilância constante. “Essa é a tendênica”, diz Luiz Pereira (Cemafauna). Também é necessário atentar aos efeitos da retirada de água do São Francisco, cujo entorno é historicamente desmatado para agropecuária e urbanização.
Um estudo da iniciativa MapBiomas apontou, ano passado, que a Bacia do São Francisco perdeu metade da superfície natural de água nas últimas três décadas. Uma análise de 2013, do governo federal, indicou que até 2040 a mesma bacia poderia perder 65% da vazão de água.
Ciência da conservação
As medidas adotadas na transposição seriam exemplares para que o licenciamento desse tipo de projeto seja menos agressivo a animais e plantas silvestres, avaliam as fontes ouvidas por ((o))eco. O monitoramento também ampliou o conhecimento científico sobre a Caatinga.
Aproximadamente 290 dissertações de mestrado, trabalhos de conclusão de curso, artigos, manuais técnicos, livros e resumos científicos foram produzidos desde o acompanhamento científico sobre os efeitos colaterais da transposição do São Francisco.
Um dos trabalhos revelou que a área de ocorrência de um lagarto exclusivo da Caatinga era maior do que a previamente registrada. Antes restrito a localidades de Alagoas e de Pernambuco, a espécie Tropidurus cocorobensis foi localizada em outros pontos no segundo estado.
O monitoramento da biodiversidade igualmente levou à criação do Refúgio de Vida Silvestre Serras Caatingueiras, pelo Governo de Pernambuco, em 2019. Seus 22 mil ha abrigam quase 740 espécies da flora e da fauna. Dezenas são exclusivas da Caatinga e algumas estão sob risco de extinção.
“Outra medida importante é revegetar áreas degradadas no bioma com espécies nativas. Isso proporciona o retorno da biodiversidade, de serviços ambientais e amplia as áreas para reintroduzir animais impactados por obras”, lembra José Cleidimário Araújo Leite (UFCG).
O Ibama não respondeu aos nossos pedidos de entrevista sobre o licenciamento da transposição do São Francisco até a publicação desta reportagem. Mas, sobre afogamentos de fauna silvestre, informações vieram por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI).
O órgão diz não ter dados sobre quantos animais morrem em canais de irrigação no país, mas afirma que grande parte dessas mortes ocorrem em projetos licenciados por estados ou municípios. Esses também autorizaram empreendimentos desde a edição da lei complementar 140/2011.
A autarquia licencia no momento 22 projetos de irrigação no Brasil. Em alguns deles a água fluirá por tubos ou sulcos no solo às lavouras. “Nos demais casos, geralmente a própria concepção e construção dos canais de irrigação é feita de modo a evitar o afogamento da fauna”, diz.
Eco Jornalismo Ambiental FOTO MDIR
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