Bastaram 20 anos para que Graciliano Ramos (1892-1953) registrasse para sempre seu nome no panteão da literatura brasileira. Em duas décadas, o estilo seco, econômico e essencial do autor talhou o drama de retirantes, a angústia do homem embrutecido e a perplexidade moderna diante do mundo. Do romance regionalista à autobiografia, o autor deformou a realidade em busca da verdade e, no processo, imortalizou personagens trágicos como Fabiano, Paulo Honório, Luís da Silva e o próprio Graciliano Ramos.
Esses 20 anos intensos são o foco das atividades que tomam a Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM) da USP nos dias 25 e 26 de setembro. Trata-se do Seminário & Exposição Graciliano Ramos 70-90: de Caetés a Memórias do Cárcere. Com participação de professores da USP e convidados nacionais e internacionais, o evento marca os 90 anos da publicação do romance de estreia Caetés (1933) e São Bernardo (1934) e os 70 anos de Memórias do Cárcere (1953) e do falecimento do autor. O seminário e a exposição são acompanhados por um curso sobre os filmes inspirados na obra de Graciliano, que acontece de 27 a 29 de setembro no Cinema da USP Paulo Emilio (Cinusp).
De acordo com o professor Erwin Torralbo Gimenez, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP – um dos organizadores do evento -, a programação tenta percorrer todos os títulos publicados por Graciliano. Mas, além disso, busca a abrangência das áreas de pesquisa sobre o autor, que passam pela crítica literária, sociologia, história, psicanálise e educação. “O propósito é criar uma visão ampla da obra de Graciliano, sem se concentrar em determinado livro”, conta Gimenez, que organiza o seminário e a exposição em parceria com outros dois docentes da FFLCH, Fabio Cesar Alves e Simone Rossinetti Rufinoni.
Composto de mesas de debates nas quais especialistas apresentarão seus trabalhos e análises sobre o escritor, o seminário trará, no dia 25, às 14h30, as apresentações de Adriana Coelho Florent, da Universidade Aix-Marseille, da França, e Darlene Sadlier, da Universidade de Indiana, nos Estados Unidos. Adriana fará a comunicação Verso e Reverso do Velho Graça: Retrato Cubista de um Clássico Subversivo, enquanto Darlene apresentará o ABC de Graciliano Ramos.
“As duas pesquisadoras estão radicadas em universidades estrangeiras e o seminário tem essa amplitude de internacionalização, um dos pontos nos quais a USP tem sido mais incisiva nos últimos tempos”, comenta Erwin Gimenez. “Isso também é importante para que saibamos como Graciliano tem sido estudado lá fora e que medida a crítica brasileira tem estabelecido com a crítica internacional.”
A mesa seguinte, às 16 horas do dia 25, também traz uma convidada internacional, ao lado de duas professoras da USP. Trata-se de Clara Rowland, da Universidade Nova de Lisboa, em Portugal, que apresentará Terteão e a Chave: Escrita e Fantasma em Graciliano Ramos, centrada em Infância, livro de 1945. Já Ana Paula Pacheco, da FFLCH, falará sobre Graciliano Ramos: Pontos de Vista Impossíveis, e Simone Rossinetti Rufinoni se deterá no terceiro romance de Graciliano, Angústia (1936), com a comunicação Modernidade à Espreita: Introspecção e Tocaia em Angústia.
“Angústia é uma experimentação literária bastante radical em termos de romance”, destaca Gimenez. Publicado em 1936 e localizado entre São Bernardo, de 1934, e Vidas Secas, de 1938, a obra se afasta dos espaços nas quais os outros títulos se ambientam. Enquanto o enredo de São Bernardo se passa em Viçosa, no Estado de Alagoas, e o de Vida Secas, em Buíque, no sertão pernambucano, o cenário de Angústia é a capital alagoana de Maceió. Cidades nas quais o escritor viveu em diferentes momentos da vida, assim como Palmeira dos Índios, onde se situa a ação de Caetés.
Mas, além das diferenças geográficas, Gimenez aponta que os três romances apresentam diferentes figuras históricas, das quais buscam compreender suas vidas interiores. Em São Bernardo é o coronel, a velha oligarquia, na figura de Paulo Honório. Já Vidas Secas traz o matuto, retratado por Graciliano “sem qualquer arremedo simplista ou pitoresco, como antes se fazia”, sublinha o professor. Angústia, por sua vez, coloca em cena um pequeno funcionário público atormentado.
“Angústia é um romance de forte introspecção psicológica, que se enraiza na tradição brasileira a partir de uma figura de transição. Luís da Silva, o protagonista, advém de uma família decadente e completamente arruinada, que não lhe trouxe heranças materiais”, explica Gimenez. A falta financeira, contudo, é acompanhada de certo repertório intelectual, uma relação que se mostra conflitiva. “Luís da Silva representa essa figura tão emblemática dos anos 1930, um tipo de transição entre o rural aristocrático, que estava ruindo, e essa nova personagem ligada ao progresso.” Uma figura problemática que se inspira mesmo na própria biografia de Graciliano, aponta o professor.
Por sua vez, representando uma nova orientação na produção de Graciliano, Infância, publicado em 1945, é um livro de memórias que abarca as primeiras lembranças do escritor e acompanha sua trajetória até os 11 anos de idade. Sua redação começou em 1938 e, assim como Vidas Secas, teve seus capítulos publicados separadamente e em ordem diferente antes de serem reunidos em um único volume.
“Infância constitui o segundo momento da obra de Graciliano, o momento memorialístico”, indica o professor. Uma forma de organizar a produção do escritor, que remete ao livro do crítico literário e professor da USP Antonio Candido Ficção e Confissão, publicado em 1955, um estudo clássico sobre Graciliano que, dentre outras análises, destaca a passagem em sua obra dos romances para os livros de memórias, Infância e Memórias do Cárcere.
O que não significa, aponta Gimenez, que essa divisão seja uma ruptura absoluta. “Entre Angústia e Infância há uma relação muito estreita”, frisa o docente. Luís da Silva não é um alter ego de Graciliano, explica, mas carrega vários traços da biografia do escritor. E personagens das memórias de Graciliano presentes em Infância também surgem no romance de 1936. “Na ficção do autor há muitas reflexões de sua visão de mundo, mas em suas confissões também há muito da elaboração estilística do romancista.”
Infância volta a ser tema da terceira mesa do dia 25, às 17h30, dedicada justamente ao papel da memória e da lembrança na obra do escritor. Nela, Márcia Cabral da Silva, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), apresentará Infância, de Graciliano Ramos: Um Projeto Memorialístico e Social e Maurício Santana Dias, da FFLCH, também incluirá a obra em Infância e Memória em Graciliano: da Casa ao Cárcere. A mesa ainda vai contar com Cleusa Rios Pinheiro Passos, também da FFLCH, tratando dessas questões em São Bernardo: o Fio da Lembrança.
Para Gimenez, a presença da memória e da lembrança na obra de Graciliano pode ser vista sob dois aspectos. O primeiro deles seria fruto de um processo autorreflexivo do próprio escritor. “Graciliano se dizia um escritor de pequena ou nenhuma imaginação. Dizia que suas composições estavam enraizadas naquilo que tinha vivido e observado da vivência dos outros. Sua margem de imaginação, segundo ele próprio, era muito restrita.”
Contudo, essa “falta de imaginação” seria acompanhada, em sua obra, pelo que o professor vê como uma análise psicológica muito densa e de veio dramático. “Nos quatro romances que publicou, sempre há uma atmosfera problemática encarnada por essas figuras centrais. Naturalmente, em termos de modernidade, isso está ligado à memória e à tentativa de lidar com o mundo.”
São personagens, explica Gimenez, que se veem solitárias e buscam uma avaliação de suas vidas. “Paulo Honório seria o mais improvável dos memorialistas e escreve ficcionalmente um livro de memórias”, pontua o professor. “O mesmo acontece em Angústia, um romance que constitui, em sua verossimilhança interna, um livro de memórias. O sujeito se vê com o fracasso da sua experiência no mundo e tenta compreender através da escrita qual é esse rastro de experiências falhadas que teve.”
Esse uso da memória como ferramenta de compreensão da vida teria se desdobrado de maneira orgânica na escrita de Graciliano ao longo dos anos. Conforme aponta Gimenez, o escritor declinaria do projeto característico do romance que marcou a geração de 1930 e abraçaria a autobiografia graças exatamente aos revezes históricos que presenciou. Em outras palavras, a substituição do romance pelas memórias seria a própria maneira de Graciliano lidar com suas experiências.
“Podemos dizer, de maneira ampla, que a memória está no centro de sua obra, elaborada ficcionalmente pelos narradores ou reelaborada por ele mesmo nos livros autobiográficos”, analisa o professor. “Essa relação estética e estilística é o que reúne os vários títulos. Há um linha forte que costura as obras e que podemos entender como marca do autor. Mas, ao mesmo tempo, e esse é um dos fatores mais ressaltados pela crítica, são livros nos quais o autor jamais se repete. Há uma unidade estilística forte, mas em cada um dos livros há uma dimensão inventiva diferente.”
Inventividade que não se dá apenas no trato da memória, como outras mesas apontam. No dia 26, às 14 horas, as atividades vão começar com Fontes de Visão: Arqueologia de uma Leitura do Amor em Vidas Secas, de Mirella Vieira Lima, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Com ela estará o pesquisador da FFLCH Paulo Roberto Ramos, que tratará das adaptações cinematográficas de Vidas Secas e São Bernardo em Rumor da Terra: a Paisagem Sonora de Graciliano Ramos à Luz de Nelson Pereira dos Santos e Leon Hirszman. Fecha a mesa o próprio Gimenez, com a fala O Realismo Deformador Segundo Graciliano Ramos – os Perfis Trágicos.
De acordo com o professor, esse realismo deformador consiste em um conceito que busca entender a maneira pela qual Graciliano tenta compreender o mundo ao redor. “Trata-se de um olhar capaz de atravessar a superfície que se dá a ver e atingir uma espécie de verdade essencial, oculta na realidade simples, cotidiana, de primeiro plano. Para isso, a técnica preferencial de Graciliano parece ser a deformação: deformar o que está na aparência para fazer emergir o centro oculto.”
"Sugiro que Graciliano não escreveu necessariamente tragédias, mas compôs, em termos modernos, perfis trágicos. Em primeiro lugar, o do próprio escritor, que estabeleceu com o mundo um modo de incompatibilidade e, depois, a transfigurou em obra literária.”
Nesse processo, explica Gimenez, há sempre uma espécie de sentimento trágico em suas personagens. “Há um perfil trágico quando o sujeito se embaraça entre essas duas instâncias, a aparência e a essência, que ele só pode entrever, dramaticamente, porque isso lhe dá um desgarramento. E esse desgarramento é trágico e uma experiência moderna. Sugiro que Graciliano não escreveu necessariamente tragédias, mas compôs, em termos modernos, perfis trágicos. Em primeiro lugar, o do próprio escritor, que estabeleceu com o mundo um modo de incompatibilidade e, depois, a transfigurou em obra literária.”
Falando de incompatibilidade, o seminário não fica alheio às atividades políticas do homenageado, que surgem com destaque na segunda mesa do dia 26, às 15h30. Ana Amélia de Melo, da Universidade Federal do Ceará (UFC), vai discorrer sobre o assunto em Graciliano Ramos e a Militância Comunista: Encontros e Desencontros. Compõem ainda a mesa os professores da FFLCH Bruno Barretto Gomide, com a fala O Graciliano ‘Russo’: Leituras de Boris Schnaiderman, e Fabio Cesar Alves, apresentando Narração e Representação: Notas sobre o Realismo em Graciliano Ramos.
A respeito da trajetória política de Graciliano, Gimenez enxerga no autor uma consciência “em choque com a realidade histórica”. Um processo que levaria, obviamente, à tentativa de transformar seu pensamento em ação. É o que explicaria sua filiação ao Partido Comunista em 18 de agosto de 1945. Uma aproximação, como o título da comunicação de Ana Amélia antecipa, que nem sempre representou adesão irrestrita.
“Sua militância era muito atrelada a uma consciência singular”, afirma Gimenez. “Como artista e personalidade singular, Graciliano teve dificuldades de se enquadrar nas doutrinas partidárias, embora tenha participado ativamente do partido. Sua personalidade dramática e reflexiva provavalmente impediu a assimilação de doutrinas no sentido partidário, mais militante.” Uma adesão ideologicamente verdadeira, salienta o professor, mas difícil na prática. “É necessário destacar que Graciliano ideologicamente sempre se posicionou como esquerdista. Era um escritor materialista, de forte inclinação revolucionária.”
Encerrando o seminário, Ismail Xavier, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, vai retomar a presença do autor no cinema com a conferência O Cinema Novo lê Graciliano, no dia 26, às 17h30. O conteúdo da fala será aprofundado com o curso de extensão Graciliano Ramos e o Cinema, que acontecerá entre os dias 27 e 29 de setembro no Cinusp. Trata-se de uma parceria estabelecida com a Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, na qual serão debatidos os filmes derivados da obra de Graciliano: Vidas Secas (1963) e Memórias do Cárcere (1984), dirigidos por Nelson Pereira dos Santos, e São Bernardo (1972), de Leon Hirszman.
Acompanhando as atividades do seminário, haverá no dia 25, às 19 horas, a abertura da exposição, que fica em cartaz até 8 de dezembro. Reunindo itens tanto do acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin quanto do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), também da USP, a mostra levará ao público manuscritos, datiloscritos, provas de editora, primeiras edições, fotografias e cartas que pertenceram a Graciliano Ramos. Segundo Gimenez, a reunião inédita desses dois acervos pretende recriar o percurso da obra do escritor ao longo dos seus 20 anos de publicação.
Uma das seções da exposição será toda dedicada a Vidas Secas, não apenas a obra mais conhecida do autor, transformada em filme, histórias em quadrinhos e detentora de uma caudalosa quantidade de edições, mas também o último romance antes da “virada memorialista” de Graciliano. A proposta dos curadores, conta Gimenez, é refazer a trajetória de composição do livro, exibindo manuscritos, datiloscritos, provas do livro e a primeira edição, de 1938. Nesse conjunto, o professor destaca o datiloscrito que será exibido, no qual ainda consta o título original da obra, “O mundo coberto de penas”, riscado e substituído pelo título definitivo, sugerido pelo editor.
Outra parte da mostra busca recompor os circuitos de ideias das décadas de 1930 e 1940, período central na produção do escritor. Parte da seção trará os principais intérpretes de sua obra, intelectuais que produziram suas análises quando Graciliano ainda vivia e que, portanto, dialogaram com o autor. São nomes como Antonio Candido, Álvaro Lins e Otto Maria Carpeaux. Complementando esse diálogo surgem os intérpretes do Brasil: Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre, que oferecem um panorama das principais ideias em circulação no período de produção de Graciliano.
Jornal da USP
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