Alimentos ultraprocessados foram projetados para "hackear" nossa biologia, diz cientista

Esta história começa em um lugar incomum para se falar sobre nutrição humana: uma sala estreita, úmida e quente do prédio de Zoologia da Universidade de Oxford, Reino Unido, com cerca de 200 gafanhotos migratórios, cada um em uma caixa de plástico específica.

Foi lá, no final dos anos 1980, que os entomologistas Stephen Simpson e David Raubenheimer começaram a trabalhar juntos em uma tarefa curiosa: criar esses insetos notoriamente vorazes para tentar descobrir se eram exigentes com a comida.

Todos os dias, Simpson e Raubenheimer pesavam cada gafanhoto e os alimentavam com quantidades precisas de comida em pó que continham proporções variáveis de proteínas e carboidratos. Surpresos, os jovens cientistas descobriram que, independentemente do alimento fornecido aos insetos, eles ingeriam quase a mesma quantidade de proteínas.

Na verdade, os gafanhotos que se alimentavam de alimentos com baixo teor de proteínas comiam tanto em excesso para atingir a meta proteica que acabavam ficando com excesso de peso (embora não fosse visível do lado de fora, porque os exoesqueletos não permitem inchaços, apesar da gordura dentro).

Isso inevitavelmente levou os pesquisadores a se questionarem se algo semelhante poderia estar causando o aumento documentado da obesidade entre os seres humanos. Muitos estudos haviam demonstrado que, mesmo com o aumento do consumo de gorduras e carboidratos, o consumo de proteínas não aumentava.

Será que, como os gafanhotos, estamos caindo na armadilha de comer em excesso os irresistíveis alimentos com baixo teor de proteínas e altamente processados que encontramos nas prateleiras dos supermercados, onde compramos nossa comida? Isso é o que afirmam Raubenheimer e Simpson, ambos agora na Universidade de Sydney, na Austrália, em seu livro "Come como los animales" (Coma como os animais, português) e em um artigo científico publicado na revista científica Annual Review of Nutrition.
 
Simpson explica isso nesta entrevista:

Como um entomologista acaba estudando nutrição em humanos?
Meu interesse pelo comportamento alimentar remonta aos meus anos de graduação na Austrália, onde eu estudava as escolhas alimentares das larvas da mosca das ovelhas, que ficam na lã e se alimentam desses animais vivos. Para o meu doutorado, aproveitei uma oportunidade na Universidade de Londres para estudar o apetite e o controle da ingestão de alimentos em gafanhotos migratórios, que existem em duas formas extremas: uma solitária e outra que forma enxames que causam devastação.

Como eles tinham a reputação de serem absolutamente vorazes, certamente não esperávamos que tivessem muitos nuances na forma como controlavam o que comiam. No entanto, comecei a investigar se eles eram capazes de perceber a necessidade de diferentes nutrientes e usar isso para regular sua ingestão.

Isso me levou a experimentar dietas artificiais com diferentes composições nutritivas, o que demonstrou que os gafanhotos tinham apetites específicos por proteínas e carboidratos: a comida deles tinha um sabor diferente de acordo com o que precisavam, permitindo-lhes equilibrar sua dieta.

Em 1987, comecei a trabalhar com David Raubenheimer em Oxford para descobrir o que acontece quando se submete gafanhotos a uma dieta que força os diferentes apetites a competir, alimentando os animais com misturas de proteínas e carboidratos em quantidades relativas que não coincidiam com suas metas de ingestão. Fizemos 25 dietas diferentes, medimos quanto os gafanhotos comiam, o quão rápido se desenvolviam e quanto cresciam, e descobrimos que quando os apetites por proteínas e carboidratos competem, as proteínas vencem.

Isso significa que, quando os animais são submetidos a uma dieta com baixo teor de proteínas e alto teor de carboidratos, eles ingerem mais calorias para obter a proteína limitante e acabam ficando obesos.

Da mesma forma, se forem submetidos a uma dieta com alto teor de proteínas e baixo teor de carboidratos, não precisam comer tanto para atingir sua meta de proteínas e acabam perdendo peso. Foi aí que percebemos que tínhamos descoberto uma nova e poderosa maneira de entender a nutrição.

Começamos a estudar muitas espécies diferentes de insetos e descobrimos que eles também tinham a capacidade de regular sua ingestão de proteínas e carboidratos, e que as proteínas eram frequentemente, embora nem sempre, o nutriente prioritário.

Até agora, estudamos espécies que vão desde gatos, cachorros e primatas em estado selvagem até peixes de aquicultura, fungos limosos e seres humanos, em contextos muito diversos, desde a compreensão da saúde e doença até a otimização da alimentação animal e a biologia da conservação.

Você descobriu que os níveis de nutrientes pelos quais os animais aspiram são aqueles com os quais eles crescem, sobrevivem ou se reproduzem melhor. Seguindo seu apetite, eles comem exatamente o que precisam. Por que nós, humanos, não?

Existem duas possibilidades: ou nossa biologia está falhando ou ainda está funcionando, mas estamos no ambiente errado. O que demonstramos em nossos estudos é a segunda opção. O que aconteceu é que nossos apetites, que evoluíram em ambientes naturais, agora estão sujeitos a ambientes alimentares altamente processados que foram projetados, em muitos aspectos, para hackear nossa biologia, para subverter nossos apetites.

Um de nossos exemplos favoritos vem de um estudo que conduzimos em Sydney. Confinamos pessoas em um centro de estudo do sono por três períodos de quatro dias e fornecemos alimentos e cardápios variados e com a mesma palatabilidade, mas todos com a mesma composição de nutrientes para uma semana específica. Tivemos uma semana com 25% de proteína, uma semana com 15% de proteína e uma semana com 10% de proteína, e os participantes não sabiam disso. Para eles, podiam comer o que quisessem, tudo tinha o mesmo gosto e havia muitas opções.

Mas aconteceu que, na semana com baixo teor de proteína, as pessoas comiam mais, porque seu apetite por proteína as levava a consumir mais calorias, na tentativa de obter proteína suficiente. Eles fizeram isso principalmente aumentando o consumo de lanches entre as refeições e, seletivamente, com lanches salgados.

Confira reportagem completa no O Globo.

O GLOBO Foto Agencia Brasil