Não será por falta de aviso. Parte da humanidade, como afirmou António Guterres, secretário-geral da ONU, caminha para o abismo com o pé no acelerador. “A humanidade só tem uma escolha: cooperar ou morrer”, diz ele. A frase é curta, clara, sustentada por uma infinidade de provas.
O Nilo, maior rio do mundo em extensão, está morrendo. Sua descarga atual de água é de menos de 3.000 m3/s. Para se ter uma ideia, a vazão do Tietê é de 2.500 m3/s, e do nosso ainda potente Amazonas, 209.000 m3/s. A água do Nilo diminui e a população aumenta, podendo ter um acréscimo de 500 milhões de pessoas, em sua bacia, até 2050. O Banco Mundial alerta que 216 milhões de pessoas em seis regiões do mundo poderão ser forçadas a deixar o lugar onde moram até 2050.
Muita gente prefere não escutar o aviso. Há quem diga: Não estarei vivo até lá. O problema não é meu.
Qual a raiz da indiferença?
Alguns falam dos interesses econômicos envolvidos na manutenção da tragédia. Outros vivenciam o problema, gostariam de mudar as coisas de lugar, mas são pobres, não dispõem de instrumentos para combater os desafios climáticos, e, muitos outros, a maioria dos humanos, preferem se preocupar apenas com o presente.
O anúncio da tragédia foi feito na COP-26, na COP-27 e em outras tantas reuniões de especialistas. A situação atual do planeta foi descrita como o ponto de virada, capaz de tornar o caos climático irreversível.
O que se passa com os humanos? Enlouqueceram? Perderam a razão? Desencarnaram dos desafios a serem enfrentados pelas próximas gerações?
Atualmente, nem o futuro nem o passado tem despertado interesse para os humanos. Importante mesmo é o Presente. Para confirmar a hipótese, aponto algumas estatísticas atuais. George Avelino em artigo recente se refere a pesquisa realizada pelo Instituto Locomotiva. Nela, “57% dos brasileiros afirmam preferir melhor qualidade de vida em detrimento de uma vida mais longa”. O artigo também menciona o pouco valor dado aos contratos de trabalho (CLT), responsáveis pela segurança e aposentadoria (INSS) na velhice.
Todas essas variáveis citadas, clima, trabalho e aposentadoria, tratam de um mesmo tema: o tempo. Tempo para entrar no inferno, tempo para viver intensamente o presente, tempo para se aposentar, tempo para sobreviver com ou sem recursos.
Questões ligadas à segurança do planeta, à velhice ou à saúde são tratadas de forma secundária. O importante é viver o presente intensamente, ser empreendedor, não ter patrão, desfrutar da liberdade de não tomar vacina, de não pensar no Outro.
Pobres habitantes do planeta.
Por que ficamos, assim, apegados apenas ao Presente?
Tempo e espaço são os dois mais importantes conceitos utilizados pelo historiador. Os humanos, inseridos em diferentes épocas e culturas, se apropriam de formas diferenciadas do tempo. Em determinados momentos da história os humanos deram muita importância para o passado, retirando dele ensinamentos. A história, mestra da vida, era tratada com reverência. Em outras ocasiões apostaram no futuro, procuraram os oráculos para prever os acontecimentos.
As formas de conceber e se apoderar do tempo são muito variadas.
Para explicar as diferenças, é exemplar a resposta de um chinês para uma pergunta feita por um ocidental:
– Qual a sua avaliação sobre a importância da Revolução Francesa?
O chinês respondeu:
– Estamos observando.
Duas histórias, duas concepções de tempo. Uma mais curta, no Ocidente, outra mais longa, no Oriente.
Nós, ocidentais, estamos acostumados a pensar o tempo por meio de uma cronologia breve (se o parâmetro for a vida no planeta), com alguns marcadores históricos de consenso no Ocidente: Idade Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. Trata-se de uma modesta percepção do tempo possível de representação em uma linha cronológica.
Atualmente as coisas mudaram de lugar.
A concepção de tempo sofreu alterações significativas. O tempo passou a ser medido pelo clique no celular. O Presente expandido pelas mídias digitais, exigiu agilidade, solução imediata de problemas, tornou-se modelo de eficiência e de existência conectada. Quem não tem um celular não tem vida, não se comunica, é um alienado, um alienígena indiferente ao tempo até do TikTok.
O historiador François Hartog reflete sobre o tema. Ele fala em prevalência do presente, denominando o fenômeno de “presentismo”. Refere-se a diversos momentos histórico temporais, a regimes de historicidade analisando diferentes maneiras de se tratar tanto o tempo como a memória.
Hoje, produzimos e consumimos um passado encolhido e tratamos com significativa indiferença o futuro. O pronunciamento de António Guterres, secretário-geral da ONU, é preocupante: “cooperar ou morrer”. Alguém escutou?
Como anunciar para os viventes do planeta Terra que o perigo está bem próximo? Talvez perguntar para os comunicadores como combater a expansão do Presente. Trata-se de veneno injetado pelo celular alterando a percepção das pessoas com relação ao tempo. Esqueceram do passado, antigo mestre da vida, e do futuro, protagonista de projetos, utopias e ilusões.
Como explicar para os “bem-nascidos”, amantes do Presente, existir limites físicos para a absorção do colágeno, para a reposição da juventude e das energias? Não adianta, é fato: o tempo corrói a até a memória. Devemos nos conformar, ele é inexorável. Alguns para consolar contam mentiras. Mesmo com exercício intenso e diário não afugentaremos o passar dos anos, a velhice, ela, fruto do tempo.
Existem várias formas de se concebê-lo. Pensar apenas em si mesmo caracteriza uma maneira (com duração de uma vida) de conviver com ele. Considerar apenas a família resulta em uma conta um pouco maior: cuidar do tempo/espaço por duas ou três gerações. Construir políticas públicas exige calcular durações adequadas a projetos de curto, médio ou longo prazo. Prognosticar a vida da natureza como um todo, com seus ritmos variados de renovação, é a maneira das comunidades indígenas lidarem com o tempo. Considerar o planeta, sua dinâmica no Universo, suas chances de existência no Sistema Solar representa uma forma racional de enfrentar o tempo, o apocalipse.
Ser indiferente à pequena vazão do Nilo, ao desaparecimento de Tuvalu, pequena ilha no Pacífico; assistir, sacudindo os ombros, às inundações, à poluição do solo, da água e do mar; acompanhar, indiferente, o caminhar de multidões para o inferno é pegar pesado no nosso planeta Terra.
Entre tantos vícios a humanidade, banhada pela revolução tecnológica, escolheu um: o vício do Presente.
Tem remédio?
É melhor perguntar para o Krenak.
Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
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