A sociedade brasileira é profundamente injusta, haja vista a separação abissal dos setores mais vulnerabilizados em relação às oportunidades de acesso a tudo que possa conferir dignidade à vida. Segundo o relatório de 2020 do IBGE, se for utilizada a linha recomendada pelo Banco Mundial para países de renda média-alta, grupo ao qual pertence o Brasil, estima-se que um quarto da população brasileira esteja abaixo da linha da pobreza.
Cerca de 50 milhões de pessoas vivem com menos de R$ 450 mensais, ou seja, passam fome, encontram-se alijadas de saneamento básico, vivem em condições insalubres de moradia, estão expostas à violência e à exploração, incluindo o trabalho infantil. Num quadro em que a sobrevivência está em risco, a saúde, a alimentação, a escolarização, o lazer, o emprego fixo e a segurança soam como artigos de luxo, privilégios, muito embora sejam direitos inalienáveis de todas as brasileiras e os brasileiros.
Essa injustiça é um processo implacável que leva à crescente deterioração do próprio sistema cujo modelo vem sendo questionado de forma global por movimentos que buscam a sustentabilidade. O resultado desse processo se constata na precarização, cada vez maior, dos serviços públicos básicos garantidos pela Constituição, em especial, a educação.
A educação precarizada se traduz na baixa qualidade das políticas do setor, desde a remuneração dos seus profissionais até a infraestrutura disponível, passando pelos currículos escolares e iniciativas de formação continuada. Com salário insuficiente, o docente se vê forçado a duplicar ou triplicar a jornada, quando não soma, ao exercício da docência, outras atividades laborais. Escolas gradeadas, carência de materiais didáticos, salas de aula superlotadas, concepções de ensino defasadas, somadas à descontinuidade das políticas curriculares e ações formativas, podem desestimular e induzir o(a)s professore(a)s à mera repetição. Como consequência, a educação escolar contribui com o aumento da desigualdade social.
Na contramão desse processo, inúmeras escolas têm anunciado em seus projetos pedagógicos o compromisso com a construção de uma sociedade sustentável e menos desigual. É sabido que o assunto inquieta pesquisadores e profissionais da área há bastante tempo, produzindo conhecimentos científico-pedagógicos que evidenciam a efetividade de propostas comprometidas com a justiça social e ambiental. Na esteira dessas preocupações, a universidade precisa aprimorar a divulgação e articulação dos resultados das pesquisas e das experiências em curso para que possa contribuir com as políticas públicas educacionais.
O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos chama a atenção para as limitações do projeto científico moderno e a necessidade de se considerar e legitimar formas alternativas de conhecimento. Sua crítica se apoia no fato daquele modo de pensar ter monopolizado a distinção entre falso e verdadeiro definido por um certo grupo, em detrimento dos saberes produzidos segundo lógicas alternativas, porém, não menos importantes ou incapazes de explicar a realidade e fundamentar procedimentos. A visibilidade dos conhecimentos científicos da modernidade se assenta na invisibilidade dos saberes elaborados de outras maneiras, como os conhecimentos populares, tradicionais ou leigos.
Antes de tudo, a divisão entre conhecimentos científicos e não científicos é geográfica, territorial. Produz-se a percepção de que no Hemisfério Norte haveria o domínio da ciência, da razão e da lei, ao passo que, no Hemisfério Sul, haveria crenças, violência e desordem. A organização territorial reproduz a fórmula metrópole/colônia ou centro/periferia. O colonizador seria considerado o detentor do conhecimento legítimo e moderno, mola propulsora do progresso, enquanto o colonizado, o atrasado. O centro seria tomado como civilizado, enquanto à periferia restaria o lugar de selvagem.
Essa mesma cartografia constitui uma epistemologia baseada na apropriação, negação e exclusão. No âmbito do conhecimento, a transformação de eventos simbólicos em objetos de consumo exemplifica a apropriação. A negação consiste no desprezo pela produção dos colonizados e periféricos, e a exclusão se assenta no silenciamento das inúmeras formas de expressão dos seus saberes.
Com base nesse raciocínio, Sousa Santos denuncia que a injustiça social está intimamente ligada à injustiça cognitiva. Logo, lutar por justiça cognitiva é o mesmo que lutar por justiça social. Para ser bem-sucedida, essa luta exige um outro modo de pensar sobre o conhecimento elaborado pelos segmentos forçosamente empurrados para as margens: as crianças, as mulheres, a população LGBTQIAP+, as pessoas com deficiência, a comunidade negra, indígena, não escolarizada ou pobre.
Essa forma de pensar pode ser sumarizada na noção multicultural de ecologia de saberes como potente ferramenta para confrontar o projeto científico moderno e monocultural por excelência. A ecologia de saberes é o reconhecimento da copresença de diferentes saberes e a necessidade de estudar as afinidades, as divergências, as complementaridades e as contradições que existem entre eles. Assim, supõe o diálogo de uma ampla gama de conhecimentos, afirmando o conhecimento como interconhecimento.
Ocorre que nesse encontro, a aprendizagem de alguns conhecimentos pode implicar o esquecimento de outros. Isso quer dizer que a ignorância não é necessariamente o lugar de onde se parte, mas pode ser o resultado do esquecimento num processo de aprendizagem recíproca. O esquecimento só é ruim quando o aprendido é valorizado em detrimento do esquecido. Nesses termos, interconhecimento implica compreender a ciência como resultante de uma ecologia de saberes.
Opondo-se à visão otimista disseminada no meio educacional, Sousa Santos ensina que equilibrar a distribuição do conhecimento científico não significa alcançar a justiça cognitiva. Além de ser altamente improvável que isso aconteça no atual cenário neoliberal e colonialista, as intervenções no mundo real exigem bem mais do que o conhecimento científico pode oferecer. Defender a força do conhecimento não científico não significa desacreditar o científico, mas sim empregá-lo, de maneira a não apagar outros saberes. A potência de um conhecimento depende daquilo que ele provoca. O desafio que se coloca é que as intervenções no real possibilitadas pelo projeto científico moderno não impeçam outras manifestações do conhecimento.
A força da ciência moderna em muitas áreas é inexorável. Contudo, há inúmeras formas de intervir no real em que o projeto moderno nada contribuiu. Como nenhum conhecimento é capaz de responder por todas as intervenções, todos eles são, em certo sentido, incompletos. Qualquer conhecimento sustenta práticas e constitui sujeitos. Qualquer conhecimento se reflete no que dá a conhecer a respeito de alguém. A ecologia de saberes, segundo Sousa Santos, é entendida como uma outra forma de pensar, fazer e conhecer que incorpora as interações entre o conhecimento científico e o não científico, compreendendo a intersubjetividade como interconhecimento e vice-versa.
Na ecologia de saberes, os conhecimentos são concebidos como práticas que viabilizam ou inviabilizam determinadas intervenções. Como o próprio nome diz, a ecologia de saberes aposta nas relações entre saberes, nas hierarquias geradas, pois nenhuma prática concreta seria possível sem hierarquias. Mas as hierarquias geradas por essa ecologia são contextuais, apoiando-se nos resultados atingidos pelos diferentes conhecimentos, com predileção para aqueles que permitem maior envolvimento na intervenção.
Se comprometida com o combate à injustiça social, a escola deverá empreender um movimento aberto de reconhecimento político e valorização do patrimônio dos grupos minoritários, incorporando ao currículo saberes contra-hegemônicos, isto é, representações elaboradas pelos setores desfavorecidos, para que possa disponibilizar ao(à)s estudantes ferramentas indispensáveis para compreender por que determinadas práticas sociais e formas de realizá-las são legitimadas, enquanto outras são vilipendiadas. Nessas situações, além de incluírem o estudo das manifestações dos conhecimentos pertencentes aos segmentos vulnerabilizados, o(a)s docentes devem estimular reflexões acerca do modo como se produzem e disseminam os discursos pejorativos sobre elas e seus participantes, ou seja, como se desqualificam as diferenças.
Imaginemos que uma professora dos anos iniciais do Ensino Fundamental tenha definido um dos seguintes temas para ser trabalhado pedagogicamente: o exercício profissional, as festas populares, os meios de transporte, as formas de comunicação, as relações comerciais, o plantio e a colheita, a manufatura industrial, uma rede social, as brincadeiras de antigamente, as eleições, a culinária, a pesquisa científica, a escrita, a arte ou as formas de preservação do meio ambiente. Enquanto práticas sociais e culturais, elas veiculam significados que podem insuflar a integração ou a segregação, afirmar o direito às diferenças e valorizar identidades dominantes.
Se a intenção é colaborar para a construção de uma sociedade mais justa, o que só pode acontecer por meio da formação de pessoas solidárias, a experiência curricular deverá instar docentes e discentes à análise dos signos impregnados nas práticas sociais, ao exame das relações envolvidas e à observância de quais identidades são valorizadas e quais minoradas: em suma, como se produzem os privilégios. A depender da narrativa empregada, certos grupos sociais serão diminuídos, exatamente para que outros sejam exaltados. Daí a importância de submeter ao crivo cultural os significados colocados em circulação pelos discursos hegemônicos referentes a determinado tema, que se fortalecem com a reprodução operada por aqueles(a)s que habitam o território escolar.
Movidos por essas intenções, educadore(a)s abrem espaços para os saberes historicamente negados, conferindo centralidade aos significados sobre as práticas sociais e seus participantes. Caso sejam verificadas coletivamente mediante situações didáticas propositalmente planejadas, poder-se-á assinalar suas origens e desnaturalizá-las. Problematizar esses elementos permitirá compreender como operam as formas de regulação que normatizam e constituem os sujeitos. Nesse sentido, a educação escolar pode desempenhar um papel fulcral na democratização das relações, desde que desconstrua o modo como a diferença é produzida e adote como referência ética e equidade. Isso significa um caminho em direção à solidariedade, às práticas inclusivas e à transformação.
O estímulo ao diálogo franco em sala de aula, que faça circular as representações do(a)s aluno(a)s acerca dos temas abordados pode ser tomado como princípio basilar de uma educação democrática. É um erro pensar que modificações na maneira de ver as coisas do mundo dependeriam exclusivamente do que formula e diz o(a) professor(a). Quando as situações didáticas propiciam o contato com muitas e diversificadas vozes, convocam a ver as coisas de outros modos. Além disso, entender a maneira de pensar de outrem permite conhecer melhor o que está em jogo na visão particular, ou seja, nos constituímos na alteridade.
Como todo conhecimento dialoga e disputa com outros modos de conhecer, trabalhar nas margens da cultura implica tradução e negociação constantes. Atividades que potencializam as vozes dos estudantes ou da comunidade aproximam-se do que Sousa Santos conceituou como pensamento pós-abissal. Enquanto o pensamento abissal está lastreado no projeto científico moderno dominante, que controla populações inteiras ao redor do globo, o pensamento pós-abissal é a expressão de várias epistemologias, como uma ecologia de saberes.
O conhecimento científico ocidental produzido no eixo Europa-Estados Unidos precisa ser questionado e ampliado por outras fontes, de tal maneira que a experiência curricular mostre que uma quantidade imensurável de saberes circula em qualquer ambiente em que se produzam as práticas sociais. Caso esses conhecimentos sejam acessados, registrados e examinados durante as aulas, desde os triviais aos mais sofisticados, desestabilizar-se-ão eventuais significações estereotipadas e silenciadoras.
A pesquisa acerca de um determinado tema ganha sentido quando se entrecruza com a visão do(a)s estudantes, construída na escola, no ambiente familiar, na comunidade ou nos meios de comunicação, incluindo as redes sociais. Valorizar os conhecimentos das crianças e jovens é o mesmo que legitimar suas identidades culturais. Enfim, considerar os saberes das pessoas historicamente silenciadas em relação aos temas de estudo e às discussões sobre as práticas sociais requer uma contextualização que rompa com processos de naturalização. Isso não tem sido fácil no cotidiano escolar.
Quando considera os conhecimentos acessados pelo(a)s estudantes, a experiência curricular intensifica um processo de produção de subjetividades que enfrenta o pensamento conservador hegemônico, perpetuador da injustiça social. Cabe ao docente atentar às representações veiculadas e aos discursos proferidos, a fim de planejar atividades de problematização e desconstrução, viabilizando o contato da turma com conhecimentos de origens distintas e divergentes. Nesses termos, um episódio narrado por uma criança, o conteúdo de um site ou texto selecionado pelo(a) professor(a) se emaranham aos conceitos acadêmicos configurando um ambiente interdisciplinar. Afinal, o caráter epistêmico de uma pedagogia que promova encontros de representações divergentes constitui um saber com bases próprias.
Inversamente ao que pressupõem as leituras apressadas, numa experiência curricular assim concebida, elementos da cultura dominante não são substituídos pelos das culturas minoritárias. O que ocorre é que não haverá menosprezo de saberes diversos e, assim, a escola passa a ocupar uma função importante no debate e no acesso à construção de conhecimentos científicos. Quando as crianças e jovens são instados a posicionar-se a respeito das práticas sociais transformadas em temas de estudo, tanto os saberes minoritários quanto aqueles que se tornaram hegemônicos devem ser abordados de forma criteriosa. Isso implica submeter a cultura dominante ao crivo de vários outros repertórios e, portanto, romper com a natureza das práticas hegemônicas: colocar-se como inquestionáveis. Interrogar, problematizar, duvidar, estudar e pesquisar desenvolvendo critérios científicos são ações que necessitam dos saberes dos setores populares. Analisar criticamente os processos que produzem a hierarquização dos conhecimentos torna-se um princípio ético-político da educação.
Se o que se pretende é promover a construção de uma sociedade mais equitativa, à escola cabe fazer dialogar os saberes privilegiados e desprivilegiados. Uma vez abordados seriamente no currículo, os conhecimentos minoritários se entretecem aos majoritários, tornando possível vislumbrar um desenho social mais justo, baseado na afirmação das diferenças e na identificação e crítica dos mecanismos que produzem e reproduzem as desigualdades.
Diante dessa realidade urge que diferentes setores da sociedade se responsabilizem pela diminuição da injustiça social produzida, também, no contexto educacional. Movimento dessa natureza vem sendo empreendido pela USP por meio do Programa Eixos Temáticos, o qual busca, em especial, que grupos de docentes reflitam e colaborem com propostas para o enfrentamento de problemas sociais a partir do compartilhamento de informações baseadas em estudos científicos. O objetivo é contribuir na elaboração de políticas públicas criando, como base, uma relação de aproximação entre servidore(a)s da USP e da gestão pública.
Texto publicado no Jornal da USP, autor Marcos Garcia Neira, professor da Faculdade de Educação (FE) da USP, e Tadeu Fabricio Malheiros, professor da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC) da USP
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