Estudar segurança jornalística nunca foi tão importante. Os ataques a profissionais do setor possuem números significativos. Somente no Brasil, foram 430 ocorrências ao longo de 2021, segundo a Federação Nacional dos Jornalistas(Fenaj). Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, em parceria com instituições internacionais, destaca três eixos temáticos sobre as ameaças e violências contra jornalistas: traumas, segurança tecnológica (cibersegurança) e gênero.
Intitulado Safety Matters: research and education on the Safety of Journalists (Segurança Importa: pesquisa e educação na segurança de jornalistas), o projeto foi apresentado no último mês de novembro em um congresso da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
Os estudos estão em desenvolvimento e, em breve, devem render artigos científicos sobre os eixos temáticos. “Estamos em uma culminância de um processo histórico de violência contra jornalistas no Brasil. É um imperativo, não tem como não pautar este assunto.”
A ideia para a pesquisa Segurança Importa surgiu em 2020, durante o Encontro Anual de Segurança de Jornalistas da Unesco. Nele, foram percebidas semelhanças no cenário midiático do Brasil, dos Estados Unidos e da África do Sul. Então, o Research Council of Norway (Conselho de Pesquisa da Noruega) decidiu financiar o primeiro programa internacional de doutorado sobre o tema.
Juntamente com os doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA, estão estudantes da Oslo Metropolitan University (Noruega), University of the Witwaterstrand Johannesburg (África do Sul) e da University of Tulsa (EUA). Além deles, alguns orientadores são docentes das universidades e outros tutores são de veículos jornalísticos e entidades do setor, como The Intercept Brasil, The New York Times, Dart Center for Journalism and Trauma e Media Monitoring Africa.
Os oito estudantes do programa foram divididos em três grupos, cada um dedicado a um tema distinto sobre segurança de jornalistas: trauma, cibersegurança e gênero. Em todas as divisões há uma pessoa brasileira e, segundo elas, a experiência internacional permitiu uma troca intercultural, garantindo perspectivas e entendimentos diferentes, além de conhecerem novos modos de pesquisa científica.
TRAUMA: “A gente pode até pensar que esses casos [de violência] são muito isolados no Brasil, mas eles se desenvolvem com certas semelhanças em vários outros contextos sociais, políticos, culturais… com maior ou menor intensidade”, afirma o pesquisador Felipe Parra. O estudo de seu grupo trata das percepções de políticas jornalísticas quanto ao suporte social recebido após coberturas traumáticas.
A pesquisa se deu através de entrevistas on-line com jornalistas dos países do estudo. No caso do pesquisador Felipe Parra, ele teve de certificar que os participantes fossem de diferentes regiões brasileiras e possuíssem diversidade étnica e de gênero, dado o panorama social do país. A pesquisa está em etapa de análise das falas e pretende verificar quais são os traumas causados e se é oferecido algum tipo de suporte para os jornalistas.
CIBERSEGURANÇA: Já a pesquisa de Marcia Pinheiro Ohlson, doutoranda em Ciências da Comunicação, trata da utilização da blockchain dentro do contexto jornalístico digital. “A tecnologia blockchain é a que está por trás das criptomoedas como o bitcoin,” explica Márcia. “Ela é um registro distribuído imutável que permite também o anonimato”. Em parceria com Samuel Wairimu, estudante de computação, a dupla examinou a capacidade desse tipo de inovação como solução em casos de cibersegurança.
A ideia consiste no registro de denúncias em uma rede blockchain, pois os dois fatores mencionados pela pesquisadora são conceitos fundamentais para investigações jornalísticas. O anonimato é essencial para o denunciante (chamado de whistleblower) e a imutabilidade de seu conteúdo torna impossível censurá-lo, seja pela alteração das informações do relato ou pelo apagamento da acusação. Apesar da ferramenta ainda não ser utilizada por sites e jornais, o conceito é promissor. O intuito da pesquisa era oferecer a possibilidade de uma solução, o que pode iniciar futuros estudos sobre o tema.
Gênero – as duas camadas da violência: Por fim, a pesquisa finalizada de Juliana Pinho trata de uma comparação entre ataques sofridos por jornalistas mulheres no Brasil e na África do Sul. Os casos estudados envolvem o presidente brasileiro Jair Bolsonaro, de extrema direita, e políticos do partido Economic Freedom Fighters (traduzido no Brasil por Combatentes da Liberdade Econômica), de extrema esquerda.
A pesquisa foi dividida em quatro partes: a violência relacionada a ideologia patriarcal e ao patriotismo (destacando que “patriotismo” possui empregos distintos de valor nas duas localidades); a violência física (praticada por apoiadores dos políticos e não pelas próprias figuras); a descredibilização da capacidade intelectual das jornalistas; e a resistência ao diálogo (quando a fala da jornalista é ignorada ou a fala do político se transforma em um monólogo).
A análise das pesquisadoras é centrada na dupla-violência cometida contra a mulher-jornalista, que é ofendida pela sua profissão e pelo seu gênero. Sobre isso, Juliana ressalta que o jornalista homem “também vai sofrer violência, mas é uma violência que não tem tanto a ver com o gênero dele e sim com a posição que ele ocupa, que é a posição de quem está questionando [o político]”.
A centralidade da segurança
Em 2013, a Unesco publicou o Plano de Ação das Nações Unidas Sobre a Segurança dos Jornalistas e a Questão da Impunidade. Embora o plano tenha quase uma década, a solução está longe de ser resolvida. O problema e o cenário são complexos, possuem diferentes nuances e facetas, além de variar a cada país e a cada momento, principalmente com o advento da internet. Estudar o tópico permite entendê-lo para então conseguir garantir a segurança dos jornalistas, e é por isso que os pesquisadores da ECA têm se dedicado ao assunto nas mais diversas frentes.
“A gente tem como objetivo formar doutorandos que se tornem multiplicadores de uma postura de percepção do que é segurança para o exercício da profissão.”
Em 2015, foi divulgado pela Unesco o relatório Indicadores de Segurança de Jornalistas: Nível Nacional. Nele, entende-se que a segurança de jornalistas é algo essencial para a sociedade como um todo, pois os ataques direcionados à imprensa têm consequências para outros grupos populacionais. Como veículos de comunicação, o papel desempenhado por jornalistas é particular e elementar em nível estrutural.
O trabalho jornalístico consiste, fundamentalmente, na troca e disseminação de informações. Sendo assim, caso algum repórter sofra um ataque, os demais começarão a se autocensurar. Além disso, toda a sociedade passa a se sentir ameaçada. E, em adição ao próprio ataque, existe o fato de que as violências, na maioria dos casos, não são investigadas e os agressores saem impunes.
Em pesquisa da Unesco, de todos os casos entre 2006-2020, 52% dos assassinatos de jornalistas ocorridos na Europa ficaram sem solução ou nem sequer foram reportados. Na região árabe, a porcentagem é ainda maior e chega a 98%. Na América Latina e no Caribe, a taxa fica em 78%, o que, apesar de ser melhor que a média mundial (87%), ainda significa que mais de 3 em 4 casos de violência não são solucionados.
E mesmo que esses números já sejam assustadores, a violência cometida contra esses profissionais abrange, além de assassinatos, casos de assédio moral, assédio físico, ameaças, etc.
Também não se limita ao próprio jornalista, como ressalta Elizabeth Saad, orientadora da pesquisa e professora do departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da ECA: “É bom reforçar que o risco ultrapassa a pessoa do jornalista hoje. Em determinados casos, chega à família, aos amigos e […] às fontes”.
Ademais, vale destacar que os impactos psicológicos e emocionais não devem ser subestimados, pois também podem levar ao impedimento do exercício da profissão.
Por que agora?
O fazer jornalístico tem sido historicamente atacado, porém, a situação atual é alarmante. No relatório global 2021/2022 da Unesco sobre Tendências Mundiais em Matéria de Liberdade de Expressão e Desenvolvimento da Comunicação Social, 85% da população mundial tem experimentado declínio na liberdade de imprensa no seu país. Se, por um lado, o acesso à informação é facilitado com as novas tecnologias, por outro, elas viabilizam outros modos de ameaçar a mídia. Além disso, cenários políticos influenciam de maneira intensa o tratamento dispensado a esses profissionais.
Os panoramas não precisam ser extremos. Em 2020, uma pesquisa do Reporters Sans Frontiers (RSF) mostrou que enquanto o número de jornalistas mortos em guerra diminui, mais jornalistas são mortos em países que não estão em guerra, representando dois terços da quantidade daqueles que perderam suas vidas. Um relatório da Unesco de 2020 constatou o aumento de jornalistas agredidos durante manifestações, com 125 ocorrências de ataques de 2015-2020 em 65 países.
Jornal da USP/Texto: assessoria de comunicação da ECA
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