O primeiro domingo de abril foi coberto de tristeza nos meios literários do país com a notícia da morte da escritora e acadêmica paulistana Lygia Fagundes Telles, da Academia Brasileira de Letras, aos 98 anos. Era conhecida como “a dama da literatura brasileira”.
A única escritora do seu tempo, em nossa língua, a ser indicada para o Prêmio Nobel de Literatura. Essa perda, lamentada por seus amigos e leitores, faz com que a literatura de expressão portuguesa cumpra a devoção de inclui-la no panteão não só das nossas letras como escritora e como mulher solidária, desafiadora, quando foi preciso na luta contra a ditadura implantada no Brasil em 64.
Em 1976, integrou a comissão de escritores que foi a Brasília entregar ao ministro da Justiça o famoso “Manifesto dos Mil” contra a censura e que foi assinado pelos mais representativos intelectuais do Brasil. Foi Lygia quem primeiro falou, num tom de corajosa veemência, sem perder a elegância, o timbre encantador de sua voz.
Quem escreve sobre Lygia Fagundes Telles sente-se impelido à vontade de dizer sempre mais. Sente logo uma empatia por sua narrativa e pela autora. É o caso da nossa melhor crítica literária, dos que vêm se debruçando analiticamente nos meios acadêmicos sobre a produção dessa autora, na qualidade de romancista e contista. Poderia ser uma grande autora de roteiros cinematográficos ou escrever sobre a Sétima Arte, na trilha de seu marido, o famoso crítico de cinema Paulo Emilio Sales Gomes. Mas teve livros seus adaptados para a TV e para o Cinema.
Como os filmes de Antonioni os romances e contos de Lygia são refinados. Muito se dirá sobre a altura da beleza de sua obra e, ao mesmo tempo, da pessoa humana de fascinante e luminosa presença, dos seus gestos, da mulher que atraia por sua aura de simpatia no convívio entre as pessoas, não só entre os amigos. Será dito também que a obra de Lygia não se separa de sua biografia interior. Ela está nos seus livros de corpo inteiro. Era muito mais do que podemos supor, sem falar da subjetividade das suas narrativas. A obra de Lygia não é contemplativa, e sim movida por grande esforço de humanidade.
Se Hamlet é “sobre” alguma coisa, é sobre Hamlet, em sua situação particular, e não sobre a condição humana, já disse Wiliam Earle. Mas isso não se dá na obra ficcional de Lygia Fagundes Telles, tudo nela é de uma comovente solidariedade humana, uma humanidade que transcende nossos juízos triviais. A primeira experiência da arte foi e será sempre a de encantamento, terá uma profundidade de sentido na sua singular transversalidade. A obra de Lygia situa-se nesse páthos de maneira singular. Lygia pensando em prospectiva e Lygia pensando em retrospectiva. Talvez com estas palavras possamos resumir o dizer ficcional dessa autora na integridade de sua obra. “A obra de arte para mim – adianta Lygia – é um imprevisto. Um grande imprevisto de loucura. ” (...) “A obra de arte é uma criação de liberdade, de liberdade e de amor” – acrescenta a autora, como quem retoca os termos de uma poética descontraída e aberta.
Tive a sorte de conhecê-la e dela me tornar amigo, desde 1978, quando da realização de uma Festa Literária na cidade sergipana de Laranjeiras, na condição de convidado. Comigo: Lygia, Nélida Piñon, Ignácio de Loyola Brandão, Ganymedes José. Numa das conversas que tivemos, nos intervalos da programação literária, ela fez sentir a vontade há muito sonhada de voltar ao Recife de Gilberto Freyre, de João Cabral de Melo Neto, Clarice Lispector (a ucraniana que se dizia pernambucana), de Mário Shenberg, de Mauro e Marly Mota, de Ariano Suassuna, de Osman Lins, de Carlos Pena Filho e Tânia, de João Condé, que a levou a Caruaru, seus grandes amigos pernambucanos. Ao Recife, lembrado por ela, das igrejas, das praias, do azul dessas praias (lembrando o que sobre esse azul, único, dizia Cícero Dias), dos seus teatros, dos seus museus, da sua culinária, das suas festas populares, do seu carnaval, dos seus folguedos e folclore, do seu povo.
Alguns de seus livros mais importantes, que recomendo, são Antes do Baile Verde (1970), cujo conto que dá título ao livro recebeu o Primeiro Prêmio no Concurso Internacional de Escritoras, na França. As Meninas (1973), romance que recebeu os Prêmios Jabuti, Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras, e Ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte. A Disciplina do Amor (1980) recebeu o Prêmio Jabuti e o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte. O romance As Horas Nuas (1989) recebeu o Prêmio Pedro Nava de Melhor Livro do Ano. A consagração definitiva veio com o Prêmio Camões, distinção maior em língua portuguesa pelo conjunto de obra, em 2005.
Marcus Prado-Jornalista
Espaço Leitor
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