Nem o resfriamento provocado pelos eventos La Niña desde 2020 conseguiu evitar que 2021 tenha sido um dos sete anos mais quentes já registrados na história, segundo uma compilação de seis conjuntos de dados internacionais realizada pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), das Nações Unidas.
O documento, divulgado ontem, faz o alerta: os níveis recordes de emissão de gases de efeito estufa na atmosfera não apontam para uma reversão dessa tendência.
Os dados — considerados por especialistas inquestionáveis, devido ao volume e à qualidade das pesquisas apresentadas — mostram que a temperatura média global no ano passado foi 1,11ºC acima dos níveis pré-industriais. Segundo o relatório, 2021 é o sétimo ano consecutivo em que os termômetros mundiais ficaram mais de 1ºC acima do registrado no século 19.
"O ano de 2021 será lembrado por uma temperatura recorde de quase 50°C no Canadá, comparável aos valores relatados no quente deserto do Saara da Argélia, chuvas excepcionais e inundações mortais na Ásia e Europa, bem como seca em partes da África e da América do Sul", disse, em nota, Petteri Taalas, secretário-geral da OMM. "Os impactos das mudanças climáticas e os perigos relacionados ao clima tiveram impactos devastadores e de mudança de vida nas comunidades em todos os continentes."
O relatório destaca que, desde os anos de 1980, cada década tem sido mais quente que a anterior. E o esperado é que a tendência se mantenha. Os sete anos com temperaturas mais elevadas foram todos desde 2015, com 2016, 2019 e 2020 constituindo os três primeiros. "Eventos consecutivos de La Niña (que resfriam o planeta) significam que o aquecimento de 2021 foi relativamente menos pronunciado em comparação com os últimos anos. Mesmo assim, 2021 ainda foi mais quente do que os anos anteriores que sofreram influência do mesmo fenômeno. O aquecimento geral de longo prazo como resultado do aumento dos gases de efeito estufa é, agora, muito maior do que a variabilidade ano a ano nas temperaturas médias globais causada por fatores climáticos naturais", disse Taalas.
A OMM usa conjuntos de dados com base em registros climatológicos mensais de locais de observação, além de navios e boias em redes marinhas globais, desenvolvidos e mantidos pela Administração Nacional Oceânica e Atmosférica dos Estados Unidos (NOAA), pelo Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa (Nasa GISS), pelo Met Office Hadley Center, do Reino Unido, pela Unidade de Pesquisa Climática da Universidade de East Anglia (HadCRUT) e pelo grupo Berkeley Earth. A agência da ONU também usa conjuntos de dados de reanálise do Centro Europeu de Previsões Meteorológicas de Médio Prazo e seu Serviço de Mudança Climática Copernicus e da Agência Meteorológica do Japão (JMA).
Ação humana
A reanálise combina milhões de observações meteorológicas e marinhas, inclusive de satélites, com valores adicionais de modelos para produzir uma compilação completa da atmosfera. "Esse estudo usa as melhores informações disponíveis em todo o mundo para avaliar os registros de temperatura global e classifica 2021 entre os sete anos mais quentes já registrados. Espero que a OMM forneça a visão mais precisa sobre o clima e, como cientista marinho trabalhando em respostas biológicas ao aquecimento, essa análise é confiável e preocupante", avalia Martina Doblin, pesquisadora do Grupo de Mudanças Climáticas da Universidade Tecnológica de Sydney, na Austrália.
Para a pesquisadora, que não contribuiu com o relatório, o registro de temperatura disponível, hoje, é "longo o suficiente para que os cientistas possam atribuí-lo ao aquecimento antropogênico em oposição à variabilidade natural". "Sabemos que o aquecimento não está ocorrendo de maneira uniforme em todo o mundo. No entanto, as temperaturas recordes crescentes já estão causando danos aos ecossistemas marinhos, com impactos bem documentados do branqueamento de corais e perda maciça de biodiversidade durante as ondas de calor marinhas. Como os organismos responderão a mudanças mais frequentes, extremas e imprevisíveis em seu ambiente ainda é pouco conhecido", diz.
Fatores desregulados
A temperatura é apenas um dos indicadores das mudanças climáticas. Outros incluem concentrações de gases de efeito estufa, calor oceânico, pH oceânico, nível médio global do mar, massa glacial e extensão do gelo marinho, e todos esses fatores estão desregulados, numa demonstração de que as ações humanas atingem o clima como um todo, destacam especialistas. "Embora os números do relatório da OMM não sejam uma grande surpresa para os cientistas do clima, eles são, no entanto, chocantes, profundamente perturbadores e mais um alerta para os líderes mundiais de que o tempo se esgotou para conversar", acredita Jonathan Bamber, professor de glaciologia na Universidade Técnica de Munique.
"O nível do mar está subindo mais rápido agora do que em qualquer outro momento nos últimos dois milênios", exemplifica Bamber. "Se continuarmos em nossa trajetória atual, esse aumento pode deslocar cerca de 630 milhões de pessoas em todo o mundo até 2100. As consequências disso são inimagináveis. O que é necessário, agora, é uma ação profunda e abrangente de todas as nações e estados para limitar o colapso climático ainda mais profundo".
Resfriamento temporário
O La Niña refere-se ao resfriamento em grande escala das temperaturas da superfície do Oceano Pacífico equatorial central e oriental, com mudanças na circulação atmosférica tropical. Geralmente, o fenômeno tem impactos opostos no clima. Ele provoca um efeito temporário de resfriamento global, que normalmente é mais forte no segundo ano do evento.
"Território terrível"
"Os indicadores climáticos de todo o mundo, compilados no relatório, são todos consistentes com um planeta aquecido pelos inexoráveis aumentos nas concentrações de gases de efeito estufa causados pelas atividades humanas. O calor está se acumulando nos oceanos que, com a adição de água derretida das geleiras e das camadas de gelo, está elevando o nível do mar. Nos locais em que, naturalmente, já são geradas ondas de calor, secas e inundações, esses fenômenos agora são mais severos devido ao clima mais quente. Sem cortes rápidos, fortes e sustentados nas emissões de gases de efeito estufa que devem ser acordados nas futuras reuniões climáticas, a cada ano continuaremos a ver mais documentos sobre o nosso clima apontando para um território ainda mais terrível."
Richard Allan, professor de ciências climáticas da Universidade de Reading, no Reino Unido
Jornal da USP Foto Ilustrativa
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