O desenvolvimento científico de um país depende principalmente de três coisas, financeiramente falando: disponibilidade, continuidade e previsibilidade de recursos. Já faz alguns anos que a ciência brasileira sobrevive com muito pouco ou quase nada desses três ingredientes; e 2022 não deverá ser muito diferente.
O volume de recursos disponível no orçamento será maior do que em 2021, graças a uma nova lei que proíbe o contingenciamento de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), mas não o suficiente para compensar as perdas gigantescas que se acumularam nos últimos anos. Continuidade só existirá se for ladeira abaixo. E previsibilidade é algo que inexiste no contexto político-econômico do Brasil atual.
Resta à comunidade científica torcer para que, tratando-se de um ano eleitoral, Jair Bolsonaro sofra um despertar iluminista, torne-se um negacionista de sua própria natureza e resolva apoiar a ciência em seu último ano de mandato. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), liderado pelo astronauta Marcos Pontes, fiel escudeiro do presidente, terá uma quantia substancialmente maior de verbas de livre provimento (discricionárias) para investir em bolsas, projetos e infraestrutura de pesquisa em 2022. (O valor previsto na proposta original do governo era R$ 6,6 bilhões, o que já representaria um aumento de 140% em relação a 2021.
Na versão final do orçamento, porém, com os acréscimos e emendas feitos na Comissão Mista de Orçamento do Congresso, é possível que esse valor ultrapasse R$ 7 bilhões.) Apesar disso, o orçamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que é vinculado ao ministério, deve permanecer estagnado na casa de R$ 1,3 bilhão, com menos de R$ 40 milhões para fomento e menos de R$ 1 bilhão, para bolsas.
Os dados são de uma análise do Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA 2022) feita pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e atualizados parcialmente em 22 de dezembro, com base no relatório final do deputado Hugo Leal na Comissão Mista de Orçamento (CMO) do Congresso, apresentado em 20 de dezembro e modificado no dia seguinte por uma “complementação de voto” (*veja nota no final da reportagem).
Uma pergunta que fica no ar é a seguinte: se o orçamento de fomento do ministério está aumentando, por que o do CNPq permanece tão baixo? É porque a maior parte dessas verbas discricionárias está lastreada em recursos do FNDCT (R$ 4,5 bilhões), cujo destino será decidido não pelo CNPq nem pelo próprio MCTI, mas pelo Conselho Diretor do fundo, que inclui representantes de outros três ministérios — Economia (3), Defesa (1) e Educação (1) —, mais os presidentes do CNPq, Finep, BNDES e Embrapa (que são órgãos de governo), três representantes da indústria, três da comunidade científica e um dos trabalhadores do setor. Resumindo: o governo costuma ter maioria nas decisões do FNDCT, e é nesse ponto que a previsibilidade sobre o que vai acontecer com esse dinheiro se dilui em frações quase que homeopáticas (ou seja, inexistentes) para 2022.
Num cenário otimista, esses recursos serão liberados rapidamente, de forma ágil, transparente e democrática, em atenção às necessidades mais urgentes e elementares da ciência nacional. Oxigênio de emergência para um paciente sufocado numa cama de UTI. A realidade dos últimos três anos, porém, torna esse cenário pouco provável. Apesar do bom humor e das boas intenções propagadas pelo ministro Pontes em suas redes sociais, o desapreço pela ciência é uma das marcas registradas do governo Bolsonaro.
A Lei Complementar 177, por exemplo, que proíbe o contingenciamento de recursos do FNDCT, só foi aprovada por um esforço da comunidade científica junto ao Parlamento, contra a vontade de Bolsonaro, que chegou a vetar os principais dispositivos da lei, mas teve seus votos derrubados na sequência. Depois disso, com a lei já em vigor, o Ministério da Economia manobrou de diversas formas para manter o dinheiro bloqueado.
O caso mais notório foi o do PLN 16, um projeto de lei que liberava R$ 690 milhões para o MCTI, mas que foi alterado de última hora para redirecionar os recursos para outras finalidades. No final das contas, de um total de R$ 3,15 bilhões em recursos não reembolsáveis que deveriam ter sido descontingenciados do FNDCT pela nova lei, apenas R$ 580 milhões foram liberados (a maior parte para a pesquisa de vacinas contra a covid-19). O resto ficou com o governo, para compor superávit fiscal, enquanto a ciência brasileira agoniza.
Como bem disse ao Jornal da USP o professor Glauco Arbix, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP: “Temos todos os motivos para nos preocupar”. Ele lembra que a Lei Orçamentária Anual (LOA) determina o quanto “pode” ser gasto, e não o quanto “vai” ser gasto, de fato, no decorrer do ano. “Temos que aguardar para ver se o Ministério da Economia vai autorizar o uso desses recursos”, completa Arbix, que já foi presidente da Finep (empresa que gerencia os recursos do FNDCT, vinculada ao MCTI) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia.
“Contra vontade política, não há orçamento que dê jeito”, diz outro veterano da política científica nacional, Fernando Peregrino, atual presidente do Conselho Nacional das Fundações de Apoio às Instituições de Ensino Superior e de Pesquisa Científica e Tecnológica (Confies).
Em outras palavras: além do orçamento ainda ser insuficiente, há sérias dúvidas na comunidade científica sobre a disposição do governo de colocá-lo em prática. A proximidade das eleições é um fator de pressão positivo: “Ninguém quer ficar mal na foto em ano eleitoral”, lembra Peregrino. “Politicamente, vai haver pressão pela liberação de recursos, e parte dessa pressão deve transbordar para a ciência.” Mas o descontrole fiscal e o fantasma da recessão pressionam no sentido oposto: se as contas públicas mergulharem no vermelho, as chances de o dinheiro ficar trancado no cofre do governo aumentam. Incerteza, ao que tudo indica, é a palavra que mais perturbará o sono mal dormido dos cientistas brasileiros em 2022.
Três projetos têm recursos reservados no cardápio do FNDCT para 2022: o do gigante Sirius (para múltiplas aplicações em pesquisa); o do Laboratório Nacional de Máxima Contenção Biológica (para pesquisa de vírus e outros microrganismos de alto risco); e o do Reator Multipropósito Brasileiro (para a produção de radiofármacos e aplicações em pesquisa), que deverão receber R$ 200 milhões, R$ 200 milhões e R$ 12 milhões, respectivamente. O restante das verbas, se liberado, deverá ser distribuído à comunidade científica por meio de editais, em que cientistas competem livremente pelos recursos, ou de “encomendas tecnológicas”, que é quando o governo escolhe um grupo de pesquisa para desenvolver algum projeto específico de seu interesse.
ESPERANÇA: A liberação integral desses recursos seria essencial para dar uma sobrevida mais digna à ciência nacional, ainda que não seja suficiente para tirá-la da UTI. A não liberação, por sua vez, poderá ser uma sentença de morte para a esperança de milhares de cientistas Brasil afora que dependem de investimentos federais para exercer sua profissão. Em especial os mais jovens, em começo de carreira — muitos dos quais estão deixando o País em busca de oportunidades no exterior, ou desistindo da carreira científica por completo.
O Brasil expandiu sua pós-graduação e aumentou expressivamente sua formação de mestres e doutores nos últimos 20 anos; mas, para que esses novos mestres e doutores se transformem em cientistas não basta o diploma, é preciso investimento em pesquisa, tanto nas pessoas quanto nas instituições em que elas trabalham. Não é o que tem acontecido. A oferta de bolsas está estagnada e a proporção de alunos de mestrado e doutorado atendidos por CNPq e Capes vem caindo nos últimos anos, como mostram dados compilados pelo pesquisador Odir Dellagostin, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap).
No que depender do caixa federal, a tendência é que esse quadro permaneça em 2022, ou até piore. O valor reservado para bolsas no orçamento do CNPq é basicamente o mesmo deste ano, aniquilando na origem qualquer expectativa de crescimento. No caso da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a proposta inicial do governo era reduzir o orçamento para bolsas do ensino superior, mas o relatório do deputado Hugo Leal acabou elevando esse valor e abrindo uma pequena margem de ganho — o que não significa que haverá aumento na quantidade ou no valor das bolsas oferecidas; vai depender da vontade do governo de gastar esse dinheiro.
Pelo relatório final, apresentado no dia 20, o orçamento geral da Capes para 2022 deverá ficar em torno de R$ 3,83 bilhões, comparado a R$ 3,37 bilhões em 2021 (*). A expectativa inicial da agência era operar com déficit em 2022, em função da alta do dólar, da inflação e das pendências acumuladas durante a pandemia, que ainda precisam ser sanadas. A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) prevê um ano difícil, também, para as universidades federais, que deverão retomar integralmente suas atividades presenciais em 2022 e precisarão de um orçamento bem maior do que o atual para funcionar a contento durante todo o ano.
Jornal da USP
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