Um amigo brasileiro, viajando pela pátria lusitana, colheu uma daquelas experiências linguísticas de que vez ou outra ouvimos falar. “O senhor tem horas?”, pergunta ele ao guarda de uma rodoviária. “Tenho”, o outro respondeu.
Nosso compatriota não se conteve: “O senhor sabe o que eu vou perguntar agora, não sabe?”. “Sim, eu sei”, respondeu o vigia, sorrindo. “E por que o senhor já não responde?”, insistiu o zuca. “E por que não me perguntas”, replicou razoavelmente o português.
Situações como essa reforçam tese continuamente defendida pelo linguista da Unicamp Kanavillil Rajagopalan. Para o estudioso, o caminho para assumir que falamos no Brasil um idioma diferente do lusitano passará por olharmos não apenas as estruturas gramaticais, mas principalmente questões de pragmática – campo dos estudos linguísticos que trata, grosso modo, de como o significado é construído nas situações comunicativas concretas.
Ao perguntar “Você tem horas?”, o enunciador brasileiro espera que seu interlocutor adote uma postura cooperativa e realize uma implicatura conversacional, ou seja, que ative elementos do contexto para interpretar um significado implícito (algo como traduzir assim a pergunta que lhe foi feita: “Se o senhor estiver de relógio, por favor, diga-me que horas são agora”).
Como mostram esse exemplo e outros, essas implicaturas não são inequívocas. Fatores como o conhecimento contextual, o universo cultural compartilhado e mesmo as visões de mundo dos interlocutores podem fazer com que o enunciatário não coopere na construção do sentido exatamente como o enunciador pretendia. Justamente por isso, é mais que urgente substituir a expressão “eficácia não comprovada” por “ineficácia comprovada”, quando falamos dos medicamentos que compõem o enganoso “kit-covid”.
A busca frustrada pela eficácia; Em meio à pandemia de covid-19, experimentos com remédios que pudessem tratar os efeitos da infecção eram esperados e desejáveis. Também era esperado – embora não desejável – que fosse um processo de tentativa e erro, hipóteses e testes, como sói ocorrer na ciência.
Uma vez frustrada a hipótese inicial – como ocorreu com os famigerados fármacos ivermectina, cloroquina e hidroxicloroquina –, faz sentido dizer que tais medicamentos “não têm eficácia comprovada”. A eficácia existiu apenas como hipótese, porém os dados não deram sustentação a ela. Já que, no universo científico, provas valem mais que convicções, fim de papo. Só que não.
Em um momento histórico marcado por pós-verdade, fake news e efeito bolha, o valor das provas e comprovações vem sendo desafiado em diversos campos. Dessa forma, a expressão “eficácia não comprovada” abre margem para implicaturas equivocadas, seja por ignorância, seja por má-fé.
Jornalistas bem-intencionados usam a expressão “eficácia não comprovada” esperando que seus leitores realizem a seguinte implicatura: “Os remédios foram testados, mas não se comprovou a eficácia prevista; sendo assim, tais drogas não podem curar pacientes de covid”. Já líderes políticos, religiosos, econômicos (sem falar em grandes grupos de saúde privada…) criam contextos para que a mesma expressão leve à implicatura oposta: “A eficácia não foi comprovada, mas vivemos um momento extremo, devemos ter fé e nos apegar a todas as esperanças, não podemos ficar presos ao rigor e à arrogância dos cientistas, devemos usar esses medicamentos mesmo sem a aprovação deles”.
Dada essa ambiguidade, urge substituir “eficácia não comprovada” por “ineficácia comprovada”. A segunda expressão pode soar algo estranha, já que a intenção dos estudos nunca foi comprovar a ineficácia do fármaco, mas buscar a cura durante a pandemia. Essa outra expressão, porém, é mais precisa, graças à mudança de escopo da negação: em “eficácia não comprovada”, a negação recai sobre “comprovada”, sem negar explicitamente a possível eficácia; em “ineficácia comprovada”, o prefixo negativo “in-” nega a própria eficácia, interditando a implicatura equivocada.
Empatia linguística: A defesa do conhecimento científico, não raras vezes, vem se pautando fortemente em uma suposta superioridade moral. De um lado, estaríamos nós (bacharéis, mestres, doutores e simpatizantes), incorruptíveis amigos da verdade. De outro, estariam eles (falsos profetas, desprezíveis messias e ignaros asseclas), negacionistas fervorosos e incorrigíveis.
Adotando essa visão, o suposto “lado do bem” corre o risco de não assumir que o combate ao negacionismo requer maior cuidado com as estratégias linguísticas adotadas, especialmente na comunicação de massa, voltada ao grande público. Uma comunicação clara, que pondere as diferentes possibilidades de recepção da mensagem e busque favorecer as implicaturas adequadas, é indispensável nesse contexto de “infodemia” (termo usado pela OMS para nomear o excesso de informação, nem sempre de qualidade, que acompanha a pandemia atual). Por ora, nossas estratégias de comunicação com o grande público ainda carecem de eficácia comprovada.
Por Henrique Braga, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e Marcelo Módolo, professor da FFLCH-USP-(Colunista Jornal da Usp)
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