Ao ler as primeiras páginas de Estão matando os meninos, livro mais recente do escritor Raimundo Carrero, Editora Iluminuras, acabei lembrando do romance Capitães de Areias, de Jorge Amado, publicado lá no início da segunda fase do Modernismo, a fase que deu um caráter mais regionalista do Movimento. Não que eu esteja comparando as duas obras, claro.
Ali é um romance e outra é uma coletânea de contos. Mas ambos os livros partem do mesmo tema para a construção ficcional: a violência contra os jovens, contra os meninos. Principalmente os pobres.
Em Capitães de Areias recordemos, Jorge Amado narra a vida de um grupo de meninos abandonados, roubando para sobreviver e sempre perseguidos pelo destacamento policial. Em Estão matando os meninos, Raimundo Carrero conta várias histórias, tendo como protagonistas os meninos e meninas do Brasil. São histórias trágicas, tristes, desses jovens quando vão ou voltam das escolas, assassinados em cidades e localidades onde são realizadas operações policiais em combate com traficantes e bandidos.
Há, no entanto, uma diferença forte entre os dois livros. Na obra de Jorge Amado, o tom é de esperança, diria até de idealismo. Os tempos eram outros. Havia a expectativa de um novo Brasil, do ideal comunista, representado no personagem Pedro Bala. Além disso, os capitães de areia eram livres, apanhavam da polícia mas viviam nas ruas, sem deveres nem obrigações sociais. Há na obra de Raimundo Carrero um tom de dor mesmo. De desalento. De desesperança. Um livro que fala de um país perdido, sem expectativas.
Estão matando os meninos reúne várias histórias que podem ser encontradas em qualquer página policial de algum jornal. Só que aqui falamos da ficção de Raimundo Carrero, um dos maiores escritores em atividade no Brasil, ganhador de muitos prêmios e traduzido em várias partes do mundo. Neste livro, o autor dá continuidade às Cartas ao mundo, iniciadas em As sombrias ruínas da alma. Agora, o autor começa a partir da Quarta carta. E assim vai narrando histórias que infelizmente não ficam apenas nas páginas dos jornais.
É Emanuelle, as pernas finas e leves ainda no Lago dos Cisnes, assassinada pelos homens, levada para o carro funerário num caixãozinho, ou João dos Aviões, sendo pisoteado pela bota de cano dobrado de um policial. Estamos falando de meninos pobres. E “menino pobre não brinca, pede esmolas” – Diz Jéssica em Para o alto e para o gol, sempre.
“Pobre passa tanta fome que acaba se viciando”, assertiva no conto Tortura em dia de fome, um dos melhores do livro. O garoto que termina acompanhando cego cantor na feira, para ganhar uns trocados sem pedir esmolas, mas isso pouco adinta ante a realidade de sua triste vida. Ou a estranha história de Amélia, que viu o pai ser assassinado na sua frente, com a mãe indiferente. Todas as histórias de Estão matando os meninos se passam na fictícia cidade de Arcassanta, cidade da Grande Recife. São personagens bem construídos, como palhaço Mula Manca e o líder estudantil Salatiel.
Na Quarta carta, Ismael chora a morte do filho “rasgado de balas” por uma polícia que procurava um traficante e matou o menino, que era inocente e brincava de carrinho de madeira, o “carro que ele mesmo fizera com os dedos de artesão”. Nem na escola o filho estava a salvo da morte: “A escola é uma espécie de passe crime para o crime desses bandidos milicianos.”
Linaldo Guedes-Mestre da Ciência das Religiões, jornalista, poeta e editor
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