O Ministério Público Federal investiga um suposto esquema de transferências de policiais militares, além de cônjuges e dependentes, para o curso de medicina da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), em Paulo Afonso, norte da Bahia.
A suspeita é que os policiais e as respectivas famílias estariam usando a lei ex officio, que assegura o direito à continuidade dos estudos dos militares, de forma irregular. Com isso, eles estariam burlando o sistema de ingresso na universidade federal, sem passar pelo Sistema de Seleção Unificada (SiSU) ou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o que configura desvio de finalidade da lei.
A denúncia foi feita por estudantes e servidores da Univasf. A lei ex officio prevê que instituições de educação superior devem aceitar a transferência de alunos regulares, para cursos afins, independentemente da época do ano e de existência de vagas.
O esquema funciona da seguinte forma: a pessoa ingressa em um curso de uma faculdade particular e pede transferência para o curso de medicina da Univasf, cursando, assim, uma universidade federal sem ser aprovada em uma seleção, como explica um aluno regular do curso, que não quer ser identificado por medo de represálias.
"Eles realizam a matrícula em uma instituição privada da área da Saúde, ou passam em cursos de instituições de ensino público com nota de corte muito inferior em relação à medicina. Aí, se transferem para o curso de medicina da Universidade Federal do Vale São Francisco, no campus Paulo Afonso, utilizando a lei."
O que levantou a suspeita é que, além do aumento repentino de matrículas de militares e familiares no curso de medicina, essas pessoas estavam sendo transferidas de cursos anteriores diferentes.
O esquema se repete em ao menos 27 casos, desde o segundo semestre de 2017. Desses 27, o G1 conseguiu identificar o contato de sete pessoas, mas nenhuma delas respondeu ao pedido de entrevista e posicionamento sobre o assunto até a publicação desta reportagem.
Com acesso à lista de casos investigados, o G1 identificou disparidades em relação aos cursos de transferência, como por exemplo, a esposa de um policial militar, que estava matriculada em um curso de Educação Física, e pediu transferência para o curso de medicina na Univasf de Paulo Afonso.
Além da esposa, esse mesmo militar usou a transferência ex officio: ele saiu do curso de medicina de uma faculdade particular para cursar na universidade federal.
No segundo semestre de 2019, dois irmãos também usaram o recurso de transferência para cursar medicina, tendo sido um deles transferido de uma faculdade particular onde cursava enfermagem, e o outro transferido do curso de farmácia.
De acordo com a Univasf, a instituição tem recebido um grande número de solicitações para transferências ex officio, com um padrão alto de solicitações por policiais militares.
"Um número muito alto dos solicitantes. Coincidentemente, 90% dos pedidos de policiais militares do Estado da Bahia são do 20º Batalhão da PM em Paulo Afonso. Na documentação apresentada consta apenas transferência por necessidade de serviço, sem maiores justificativas", detalhou a universidade.
Três pessoas, entre servidores e estudantes que também não querem ser identificados por medo de represálias, informaram ao G1 que um antigo comandante da 20ª Companhia Independente da Polícia Militar (CIPM) ensinava aos subalternos como fazer a transferência, burlando a lei.
A Polícia Militar disse ao G1, em nota, que não tem conhecimento das práticas, que o referido oficial não é mais lotado na 20ª CIPM e que não há processo investigatório na PM com essa denúncia. A polícia informou também que não compactua com desvios de conduta e que apura todas as denúncias formalizadas na Corregedoria da PM.
A maioria dos alunos transferidos para o campus Paulo Afonso são do curso de enfermagem: 12 deles. Outros quatro pediram transferência do curso de odontologia e três do curso de farmácia.
Uma pessoa reivindicou a lei ex officio para ser transferida do curso de terapia ocupacional e uma do curso de educação física – a esposa do militar citado anteriormente.
Apenas seis estudantes foram transferidos do curso de medicina, mas todos eles de faculdades particulares. A suspeita da fraude se evidencia ainda mais em alguns casos, porque os alunos já transferidos por ex officio usam um outro mecanismo da legislação, chamado by-pass.
Na prática, funciona da seguinte forma: o aluno mora em uma cidade, entra em uma universidade particular, transfere sob ex officio para a Univasf, e depois usa o by-pass para regressar para a cidade de origem, mas dessa vez cursando medicina em uma universidade federal, ao invés da particular do curso de ingresso inicial.
"Esses discentes cursam um ou dois períodos em nossa instituição, e acabam sendo transferidos, novamente pelo mecanismo de ex officio. Aí eles saem do curso de medicina de Paulo Afonso, para algum outro curso de medicina na federal de outra cidade, como por exemplo na Ufba [Universidade Federal da Bahia]", explicou um servidor.
De acordo com um dos alunos denunciantes, os estudantes ex officio chegam a combinar entre si para dividirem as universidades, para não levantar suspeitas.
"Com isso, o termo de 'transferência por força de lei', que antes constava na matrícula, deixa de constar e passa a ter apenas 'transferência entre federais', o que acaba limpando os vestígios."
Esse padrão no processo de transferência ex officio também está sendo analisado pela Univasf e pelo MPF.
"Estamos trabalhando com a Secretaria de Registro e Controle Acadêmico, Procuradoria Jurídica e apoio técnico-administrativo da Pró-Reitoria de Ensino [Proen], para consolidarmos análises que fundamentam a tomada de decisão quanto aos pedidos que chegam até a Proen. Acreditamos que a análise do padrão também auxiliará os setores competentes, no tocante à movimentação dos requerentes para outros setores vinculados ao Comando-Geral da Polícia Militar da Bahia", informou a universidade.
O MPF solicitou à Polícia Militar a lista dos alunos transferidos, para que a PM preste esclarecimentos sobre cada um dos 27 casos. Essa resposta determinará se e quais sanções os estudantes devem ter, caso fique comprovado o desvio de finalidade da lei.
"Foi solicitado que a PM esclareça o que aconteceu em cada um dos casos. O MPF ainda aguarda essa resposta. Somente após o recebimento e análise dessas informações, que serão encaminhadas pela polícia, é que o MPF poderá avaliar que providências poderá adotar".
O G1 também entrou em contato com o Ministério da Educação (MEC), para saber que tipo de providências e sanções poderão ser tomadas nos casos, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
O volume de novos estudantes tem atrapalhado a rotina dos alunos que entraram regularmente no curso, por processo de seleção.
"Cada turma do curso de medicina de Paulo Afonso suporta em torno de 40 alunos, porém, estão havendo tantas transferências que o número na sala aumentou mais de 50% e durante todo semestre entram mais e mais. Muitos deles não conseguem aguentar o ritmo do curso e acabam reprovando", disse um dos alunos.
Um servidor da universidade também falou sobre a dificuldade do ensino e do aprendizado em uma turma com mais alunos que a média.
"Uma turma teve o quantitativo de 17 transferências ex officio, e chegou a ter 60 alunos. Isso gera, em um curso com metodologias ativas de ensino, grandes dificuldades em relação à realização de provas e atividades. O quantitativo de vagas previsto pelo SiSU é de 40. Acima disso atrapalha o trabalho dos docentes. Nossas turmas estão preparadas para comportar 40 alunos, não 60", conclui.
G1 Bahia/itana Alencar
2 comentários
07 de Jun / 2021 às 14h31
Alguma dúvida se apertaram 17?
08 de Jun / 2021 às 06h21
Renan, hahaha, sem dúvida neh Eita povinho malandro