O caos instalou-se naquele distante país. Os casais separavam-se em profusão. Os parentes digladiavam-se em hostilidades irreversíveis. Os poderes oficiais esfarelavam-se. Detentores de cargos comissionados do Executivo rebelavam-se em cumprir as ordens do mandatário, a quem tratavam como incompetente.
O Legislativo estava fechado porque ninguém conseguiu se eleger em face do voto nulo. Advogados e usuários do Judiciário protestavam depois que o presidente do tribunal confessou que a Justiça era muito lenta e ele não tinha mais o que fazer. Para qualquer reclamação, finalizou, que procurassem o papa.
A dimensão da tragédia estava no jornal do dia. Um político sem mandato revelava que ia insistir naquela profissão. Não sabia fazer outra coisa. A candidatura – acrescentava – estava apoiada na ideologia do avô, deputado matreiro dos idos de 1950. O velho era dono de um curral eleitoral e acostumado a ganhar as eleições. Na única vez em que o candidato da oposição elegeu-se governador, informou ao seu eleitorado: “O governo mudou, mas eu não mudo. Permaneço aliado do governo”.
Na página de anúncios fúnebres, uma nora comunicava o falecimento “daquela lambisgoia”, convidando a todos para o coquetel depois da missa de sétimo dia da sogra.
Nesse clima, estampava-se na página policial a foto do frontispício do novo presídio, cujo diretor, faz poucos meses, se identificava como defensor dos direitos humanos. Abaixo do letreiro com o nome do estabelecimento, homenagem a um soldado de polícia torturador, estava escrita em letras garrafais a frase que causava perplexidade: “Aquele que aqui entrou e disser que não apanhou está mentindo”.
O que acontecia naquela nação, de uns tempos para cá? Os fatos eram muito estranhos, a revelar uma conduta sincericida na comunidade. Tanta verdade, nua e crua, não permitiria a convivência social, logo agora que fora liberada a saída de casa para a população, pois o surto da pandemia estava encerrado.
Aquele país ufanava-se de ser a pátria da eficiente vacina que liquidou o vírus. Sim. Ali, a mortandade pela doença caiu a zero quando, apesar de pouco testada, a maravilhosa droga foi aplicada com êxito em todos os habitantes antecipando-se a lugares mais desenvolvidos, para orgulho dos nativos.
Num acerto científico tido como razoável entre o inventor da vacina e o governo local, decidira-se pela imediata introdução do remédio que liquidava o vírus terrível. Não havia tempo a perder. Enquanto isso, o cientista continuava os testes do produto. Choviam pedidos de outros países para a exportação do líquido, mas o estoque era limitado, e o ministro da Saúde, aderente ao novo estilo da terra, a todos respondeu que farinha pouca, meu pirão primeiro.
O surto coletivo de verdade acabaria por liquidar a população de uma forma mais trágica do que o vírus, diziam os administradores. As pessoas engalfinhavam-se na rua a partir de uma troca de olhares mal assimilada. Nas calçadas, os pedintes espatifavam os vidros dos automóveis toda vez que os proprietários diziam que tinham um trocado no bolso, mas não iam dar para aquele vagabundo. Enfim, uma confusão.
O presidente da República já pensava em declarar estado de calamidade pública quando, alarmado, o inventor da vacina chegou no gabinete do chefe do Executivo. Franco, revelaria novos dados sobre o produto.
Os testes em laboratório confirmaram o êxito da substância mas identificaram dois efeitos colaterais. Os resultados positivos duravam pouco tempo, necessitando repetir a dose. E, pior, a vacina agia sobre o cérebro impedindo reservas mentais. As pessoas diriam o que pensam sem censura. Para o primeiro efeito, era possível fabricar novo lote. Em relação ao segundo, nada a fazer.
O país tornou-se o mais novo importador da vacina.
Og Marques Fernandes-Ministro do STJ e ex-repórter do Diario de Pernambuco
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