No dia 16 de julho de 2020, o Engenho Fervedouro ouviu o estampido de sete tiros disparados contra o agricultor Edeilson Alexandre Fernandes da Silva. As sete balas alojaram-se no seu corpo e o eco dos tirombaços procuraram abrigo nos montes e vales, das matas e plantações do município de Jaqueira, em Pernambuco.
Como na força de uma canção resistente, Edeilson não morreu, não partiu, não tombou para dentro da terra. Com os olhos turvos, com o sangue em fervo, com a hora próxima, seguiu sobre sua moto até ser vencido pela dor. O chão lambeu seu rosto, mas ele estava vivo.
A história dessa emboscada, os pormenores da luta, o diário do assentamento nas terras do Fervedouro, abriram o tempo fechado e salpicaram-se sobre a letra de um poema de Marília Parente, compositora, ativista e pilar de resistência pernambucana. À letra, aplicou-se um tecido de música; à música, um arranjo de canção; à canção, o convívio da voz. À essa luta-canção aplicou-se o título Para la tierra volver. O violão folk, de textura latina, a gaita rural, a guitarra roqueira, bateria comedida, contrabaixo pontuando, em conluio lúdico e orquestrado respiram um oxigênio vindo de um mundo de inspirações e esperanças.
Ninguém atravessará a história de Edeilson sem se perguntar sobre seu corpo fechado, sobre sua fome de viver, sobre seus olhos que insistiram em ver o verde e, em fé, ver o Fervedouro sair da utopia e entrar na canção real. Ninguém, nenhum ouvido, pisará nas plataformas digitais sentindo a canção na voz de Marília e vestirá a roupa da emboscada. A sua voz brinca fugindo das balas. O seu canto é o próprio olho aberto, o seu olho é a justa interpretação de sua alma. Uma canção de quase seis minutos, bem arranjada, cumprindo o seu propósito de adensar poesia à luta pelo chão.
Para la tierra volver tem alma e saber. Belo arranjo, acidentes bem controlados e dosados, melodia sem experimentos inúteis: é um poema em ascensão. Todo o conflito rural, as lutas pela posse da terra, sendo essa mesma terra a dona de tudo e de todos, o panorama das serras e a velha estação ferroviária da Great Western, com um trem que nunca mais chegará a Jaqueira, estão presentes na canção, são a canção, são seu som fundamental. A produção do single é de Marília Parente e Antonio Nolasco. “Não se pode conter a sina de um camponês, da terra ver tudo nascer y para la tierra volver”. Esta canção está marcada para viver.
*Aderaldo Luciano, nascido em Areia, na Paraíba, é poeta pautado pela estética da poesia do povo. Estudioso da poesia e da música do Brasil profundo, é mestre e doutor em Ciência da Literatura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Até junho de 2017 manteve uma coluna semanal no programa Sabadabadoo – A Gente Gosta de Sábado na Rádio Globo (Rio e São Paulo): o Cordel de Notícias.
0 comentários