*Por Padre Sérgio Baldin Júnior
A pandemia de Covid-19 promoveu transformações significativas em nossas relações sociais no trabalho, na família, na escola, entre outros espaços. Seus impactos chegaram até mesmo à forma como lidamos com o luto e a perda provocada por esta grave crise. As exigências sanitárias de isolamento social e quarentena impediram que as famílias que lidaram com a morte nesse período pudessem adotar os ritos e protocolos comuns até então. A celebração de Finados em 2020 torna-se, portanto, um momento de aceitar a ressignificação desse tema para os próximos anos.
Desde a chamada Gripe Espanhola no início do século 20, o mundo não encarava uma crise sanitária tão grave e global como esta. No fim de setembro, com sete meses de pandemia, eram mais de 1 milhão de mortos em todos os continentes. Apenas no Brasil, um país que só agora registra queda no número de óbitos, foram mais de 150 mil vítimas até meados de outubro. Mais de 150 mil famílias que não puderam se despedir de seus entes queridos, uma vez que as restrições chegaram aos velórios, com horário reduzido, limitação de número de pessoas e caixão lacrado.
O luto está envolvido em uma cerimônia social de passagem e despedida. Há valor simbólico grande e aspecto psicológico fundamental para a retomada do sentido da vida e para a superação da ausência. Uma pessoa partiu, mas permanecemos solidários uns aos outros graças a esse sentimento. Contudo, como em outros momentos trágicos da história recente da civilização, essas marcas deixarão memória profunda nas narrativas sociais e familiares. Na maioria das vezes são parecidas com a sensação de que algo não foi finalizado, de certa incompletude que precisa ser satisfeita.
Isso pode ocasionar perda de sensibilidade com relação à morte e todo o simbolismo que ela traz consigo. Tal situação já estava em curso na sociedade contemporânea com a mudança de estilo de vida, mas pode ser potencializada a partir da pandemia de Covid-19. Entretanto, pode levar a um impacto inesperadamente positivo: a crença de que o ser humano é invencível e a noção de morte como algo distante da realidade de muitas pessoas (já que vivenciaram poucas experiências de luto) podem dar lugar a uma mudança no sentido que cada um dá a sua vida, graças à proximidade e à evidência da fragilidade humana.
As mudanças na forma dos velórios e enterros são os principais pontos que reforçam essa significação. Do ponto de vista antropológico e cultural, trata-se de ritualidade cheia de sentido e significado, religioso ou não, que permite a elaboração do luto de maneira mais afetiva e efetiva. Agora, com o avanço do número de mortes pela Covid-19, percebe-se uma tentativa de racionalização do processo de morte, uma cujas vítimas não puderam sequer ser vistas. É uma ressignificação em um primeiro momento, mas pode levar a um prolongamento psicológico do processo de luto.
Assunto ainda tabu na sociedade, ficou claro nos últimos meses que a morte faz parte da vida, estejamos preparados ou não. Na ausência do velório e dos demais ritos que tradicionalmente utilizamos para nossos mortos, é preciso criar outras formas de despedida coletiva que envolvam a memória da pessoa falecida e que possam amenizar esse luto que precisa ser elaborado internamente. Só assim estamos prontos para aceitar a situação e encontrar forças para seguir em frente com os desafios e perigos que surgem continuamente em nossa frente.
* Padre Sérgio Baldin Júnior é Coordenador do Curso de Filosofia e Coordenador de Missão Institucional do Centro Universitário Salesiano de São Paulo – UNISAL.
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