Em uma tarde incerta de 1953, depois de muito estranhar a chiadeira insistente no velho rádio do irmão, Maria Alexandrina da Silva, com apenas cinco anos de idade, previu: “um dia vai aparecer um rádio em que o cara vai poder ver as pessoas dentro”.
Desde muito cedo, Maria era tomada por premonições e não anteviu apenas a popularização dos aparelhos televisivos, mas também sua própria sina: “cantar, ser a primeira mulher da viola do mundo”. Uma visão que começou a tomar forma aos 12 anos, no sítio em Várzea de Passira, quando ganhou do pai o primeiro instrumento e desembestou a soltar os versos que já não cabiam mais em seus pensamentos de menina, uma moça, Mocinha de Passira.
“Eu memorizava as estrofes, não fazia pra ninguém ouvir, mas um dia disse ao meu pai que eu sabia fazer rima, ele pediu pra eu mostrar, então falei assim não, só mostro quando vier sentar um cabra aqui comigo mais a viola”, lembra a repentista. Seu João Marques da Silva, que não perdia uma cantoria pela região, confiou na obstinação da filha e não tardou a aparecer com uma viola e o cantador Zé Monteiro, com quem Mocinha fez sua primeira apresentação ali mesmo, na sala do sítio que até hoje resiste e onde a repentista Patrimônio Vivo de Pernambuco recebeu a equipe do Portal Cultura.PE.
“Foi nesse chão em que eu me senti, pela primeira vez, uma partícula no universo”, revela Mocinha, fazendo questão de mostrar os mandacarus que teimam em crescer sobre o telhado da casa, enfeitando seu “lugar sagrado, onde estão as raízes de tudo”.
À luz das estrofes metrificadas de Raul Ferreira, Zé Ananias, Severino Moreira e Severino Camocim, que costumava ouvir na companhia do pai, Mocinha foi ganhando confiança para também encontrar sua voz própria, traçar seu caminho no universo do repente. Desde a apresentação improvisada – e aplaudida por Zé Monteiro e seu pai – na sala de casa, não parou mais de exercer a função de transformar em verso raro o pensamento ligeiro.
“A primeira cantoria foi numa quarta-feira, no sábado eu já tava me apresentando pelas fazendas e daí não parei mais, meu pai sempre comigo, me acompanhando”, lembra Mocinha. “Nenhuma outra repentista conseguiu viver da viola como eu. Desde cedo, decidi que se eu quisesse comprar um sapato tinha que ser com o meu repente, nunca trabalhei com outra coisa.” A exceção foi um breve momento, quando aos 10 anos de idade, montou uma escolinha de reforço escolar para os filhos dos fazendeiros da região, “os meninos ricos e burros”, sorri ao lembrar.
Herdou da mãe, Alexandrina Maria da Silva, a busca por independência financeira. Em tempos ainda mais marcados pelo machismo, “a mãe já tinha sua independência, criava uns bezerros ali atrás e se um boiadeiro passasse por aqui querendo comprar, pai falava logo tem que ver com a mulher, é dela, ela que decide”.
Ao contrário de Seu João, Dona Alexandrina não queria que Mocinha aceitasse o convite de ir morar em Caruaru com um dos maiores poetas populares e improvisadores brasileiros, o paraibano Pinto do Monteiro. Não teve outro jeito, aos 15 anos, juntou o que pôde em sua frasqueira amarela – “a coqueluche da época, toda menina tinha uma” -, e fugiu.
Dizem que foi desses encontros que mudam para sempre a vida de alguém. Era noite alta quando Mocinha e seu pai adentraram pelo Sítio Tamanduá, em Passira, para conhecer Pinto do Monteiro, que estava de passagem pela região. “Finalmente estou lhe conhecendo, você que é a famosa Mocinha da Passira”, lembra a repentista, com apenas 14 anos à época. Já admirado em todo o Nordeste e presença constante em emissoras como a Rádio Difusora de Caruaru, Pinto reconheceu de imediato o talento de Mocinha, colocando-se à disposição para ajudá-la a seguir carreira. “Eu tinha que ir pra Limoeiro pegar as cartas que ele mandava pra mim; caixa postal 114”, nunca vai esquecer.
Após deixar Passira e ir viver com a família de Pinto em Caruaru, Mocinha pôde mergulhar no circuito da cantoria popular, mas ainda sob os cuidados do pai. “Andei muito tempo com ele, pra tudo que era lugar, só fiquei ‘de maior’ aos 21 anos de idade”, conta.
Uma verdadeira peleja contra o machismo é o que Mocinha tem travado ao longo de sua trajetória no repente. São muitas as situações guardadas na memória em que teve que “sair quebrando todos os preconceitos, passando por cima de cantadas de homem safado”, diz.
Em muitas ocasiões, o drible para situações em que se via desafiada por ser mulher vinha em forma de versos mesmo. Um dos casos mais difundidos foi a resposta que deu ao mote Se você casar comigo/vai ficar de gravidez/vai acabar parindo/três meninos de uma vez, apresentado pelo repentista Jorge Amador. De pronto, Mocinha soltou o que gosta de chamar de “tapa sem mão”: Eu posso ter todos os três / são filhos tudo meu / o primeiro é do padeiro /o segundo do Ricardão / o terceiro de Oliveira / nenhum dos três é teu.
Em 1976, só após quase 20 anos de estrada, Mocinha teve a oportunidade de registrar seus versos em um disco. Foi a única mulher repentista a participar das gravações de um marco importante para a discografia do gênero, o LP Viola, Verso, Viola, do Estúdio Rozenblit. O disco reuniu grandes nomes da tradição oral, como Diniz Vitorino, os irmãos Otacílio, Dimas e Lourival Batista, além de Zé Vicente da Paraíba.
Das oito faixas, Mocinha participa de duas, duelando com Diniz Vitorino em Martelo Alagoano e na histórica Desafio em Martelo Agalopado, em que por meio de versos como acabou-se o tempinho em que a mulher / só vivia nas margens dos barreiros / lavando blusinhas e cueiros / dos filhos dos homens sem respeito vai desconstruindo o imaginário da mulher ideal, sempre recatada e do lar, ao passo em que reivindica seu próprio lugar na história do repente.
Se o Brasil oficial é dos brancos, do presidente e de seus ministros, o Brasil real é o de Antônio Conselheiro e Mocinha de Passira. A sentença, parte integrante do discurso de posse de Ariano Suassuna na Academia Brasileira de Letras (ABL), revela a admiração que o imortal escritor e dramaturgo brasileiro tinha pela repentista.
O primeiro encontro foi em uma das muitas cantorias na Praça do Diário, centro do Recife, organizadas pelo embolador Oliveira. “Eu tava cantando só na época, Ariano me conheceu ali, me deu um mote pra eu cantar e parti, sem montagem nenhuma, esperando que desse certo… Na terceira estrofe, lá vem ele, me deu um abraço, chorou e tudo, se identificou mesmo”, conta Mocinha.
Em 1990, quando foi eleito para a ABL, Ariano fez questão de convidar a repentista para uma cerimônia realizada no Palácio Campo das Princesas, no Recife. Na ocasião, coube à Mocinha entregar-lhe o colar oficial de membro da Academia. “Ele mandou o carro ir me buscar onde eu estivesse, tinha que ser eu a botar esse colar nele, então, fui! Botei o colar e ainda cantei pra ele”, lembra com carinho.
Com hábitos simples, cuidando dos gatos de rua que acolhe ou torcendo por seu Santa Cruz, Mocinha vive hoje com seu filho Marcos em Feira Nova. Quando não está se apresentando pelo Brasil, divide-se entre o cuidar da casa na cidade e o sítio em Várzea de Passira, a 30 minutos dali e onde, vez ou outra, ainda organiza noites de boemia com dominó e duelos de viola.
O pai, seu grande incentivador, morrera no sítio mesmo, em 5 de abril de 1978. Chegou a ver seu sucesso e a ouvir o primeiro disco.
“Eu tava em São Paulo, comecei a ter uns sonhos atribulados, sentia que tinha alguma coisa acontecendo, que precisava voltar. Quando cheguei, vi ele doente e o povo jogando dominó na sala, tive tanta raiva que ainda deve ter peça voando por aí. Falei com ele, respondeu bem baixinho, entendendo o que eu tava dizendo porque o último que morre é a árvore da vida, o cérebro”, narra Mocinha, lembrando que foi mesmo Seu João quem lhe abriu os caminhos. “Se ele tivesse ido pelas ideias da minha mãe e do meu irmão, eu teria fugido de casa sem viola, mas pra onde… não sei”.
O título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, Mocinha “comemorou sozinha, porque a batalha sempre foi minha mesmo, só depois fui falando para três ou quatro pessoas que considero”.
Dedilhando sua viola, gosta de deixar aberta a parte superior da porta principal do sítio, apreciar o vento que entra e a paisagem à frente.
“Nunca quis uma casa que não fosse pro nascente”. Além do Diploma de Patrimônio Vivo – exposto em lugar de destaque na parede da sala -, a repentista também guarda em Passira fotografias, recortes de jornais, troféus e outros registros de uma vida inteira dedicada a uma das mais ricas expressões da cultura popular nordestina. A vida que previu ainda menina e construiu na certeza de que “quando a gente tem vocação, não tem fronteira”, como faz questão de ensinar.
Foto: Fundarpe
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