“O Facebook ajuda você a se conectar e compartilhar com as pessoas que fazem parte da sua vida.” É essa mensagem que aparece na sua tela ao se fazer o login na rede social – ou antes de criar a sua conta, se você não for um dos 130 milhões de brasileiros que usam o Facebook.
Mas, além de se conectar com amigos e família, ao criar uma conta ou logar na plataforma, você está compartilhando suas informações com a empresa. O uso dos dados pessoais sempre esteve descrito nos Termos de Utilização e na Política de Dados – para quem tivesse paciência de lê-los. Mas a extensão e as consequências desse uso só começaram a vir à tona com o escândalo da empresa Cambridge Analytica, que mostrou como dados de usuários do Facebook foram usados na segmentação de anúncios para a campanha eleitoral de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos.
Um estudo inédito da pesquisadora Débora Machado, da Universidade Federal do ABC (UFABC), revela que o uso de informações pessoais pode ir além. O Facebook tem tecnologias suficientes para saber o que estamos sentindo em cada momento que logamos na plataforma. E mais: a partir disso, pode moldar as nossas emoções em benefício próprio.
A pesquisadora buscou patentes e pedidos de patente registrados pela Facebook Inc. nos Estados Unidos entre 2014 e 2018, encontrando quase 4 000. Entre elas, refinou a pesquisa para aquelas que só diziam respeito à rede social e depois selecionou 39 com potencial de modulação do comportamento do usuário. Destas, cerca de 15% tinham a análise de emoções como parte fundamental do funcionamento – vale lembrar que nem todas se tornaram patentes de fato. “Por mais que aquela tecnologia não esteja sendo utilizada, ou não vá ser utilizada, aquele é um conhecimento que a empresa adquiriu”, explica Débora.
Durante um mês, a Pública analisou algumas patentes sobre modulação de comportamento e adaptação do conteúdo apresentado no feed de notícias para entender como as tecnologias do Facebook podem detectar as emoções dos usuários e o que elas podem fazer com essas informações. A reportagem descobriu 130 invenções da Facebook Inc. com a palavra “emotion” e/ou “feeling” (emoção e sentimento, respectivamente) – uma parcela pequena do total de 3 081 patentes efetivamente registradas desde sua criação, em 2004.
O levantamento revelou que 65% (85) das patentes que tratam de emoções foram registradas a partir de 2015, quando a plataforma patenteou a tecnologia da ferramenta “reactions”, aquelas “carinhas” que demonstram sua reação a um texto – sinal de que, desde então, o interesse da plataforma por reações emocionais só aumentou.
Em fevereiro de 2016, o Facebook lançou as reactions com a ajuda de psicólogos e psiquiatras da Universidade Berkeley, nos Estados Unidos, e de Matt Jones, ilustrador da Pixar que fez a animação Divertidamente.
A ferramenta permite que o usuário reaja com cinco diferentes emoções às publicações na rede social. Além do tradicional “curtir”, a plataforma oferece as reações “amei”, “haha”, “uau”, “triste” e “grr”. A intenção era “fornecer ao usuário mais maneiras para ele expressar suas reações às postagens de uma maneira fácil e rápida”, conforme declarou o desenvolvedor de produto Sammy Krug durante o lançamento mundial da ferramenta. “Ao longo do tempo, esperamos aprender como as diferentes reações podem ser ranqueadas diferentemente pelo feed de notícias para fazer um melhor trabalho em mostrar para as pessoas as histórias que elas mais querem ver”, completou.
Ao mesmo tempo que lançava as reactions, a empresa registrou diversas patentes com diferentes tecnologias para captar e modular as emoções dos usuários.
O reconhecimento facial, sensor de teclado e análise de informações linguísticas são alguns exemplos de como a empresa vislumbra fazer isso. “A maioria das patentes cita um uso de todos os sensores do celular”, diz Débora. “Fala-se bastante de reconhecimento facial, fala-se bastante de reconhecimento de voz. Fala-se também de uma análise da forma que você digita e de sensores como giroscópio, que consegue identificar em qual posição o celular está, a rapidez com que você tira ele do bolso, a iluminação ao redor.”
Uma das patentes analisadas pela Pública se chama “Técnicas para a detecção de emoção e entrega de conteúdo” e foi registrada em fevereiro de 2014. A ferramenta identifica o sentimento que o usuário expressa a cada publicação que ele vê. Para captar isso, o aplicativo pode usar a câmera do dispositivo e reconhecer a expressão facial do usuário e a interação com o post (curtida, reação, compartilhamento ou comentário). Com a emoção reconhecida, o aplicativo leva em conta a informação para apresentar as próximas publicações. No texto da patente há um exemplo: “se um usuário for identificado como entediado, um conteúdo engraçado poderá ser mostrado a ele”.
Outra patente, chamada “Determinando características de personalidade do usuário a partir de sistemas de comunicação na rede social”, descreve uma tecnologia capaz de identificar informações emocionais do usuário a partir do conteúdo das suas mensagens de texto. Ou seja, a ferramenta lê o que você escreve e interpreta, permitindo que a rede social obtenha informações linguísticas de um aplicativo de mensagens – que pode se aplicar ao Messenger, chat privado do Facebook ou ao “Direct” do Instagram – e as registre junto ao perfil do usuário com classificações como extroversão, sociabilidade, conscientização e estabilidade emocional. “Usando características de personalidade ao selecionar conteúdos, a rede social aumenta a probabilidade de que o usuário interaja favoravelmente com o conteúdo”, diz a descrição da patente.
Se você costuma enviar mensagens a seus amigos se lamentando de estresse, cansaço ou frustrações, ao usar essa tecnologia a plataforma poderá interpretar que você está emocionalmente instável e moldar os conteúdos que combinem com esse estado emocional.
Outra tecnologia registrada pelo Facebook também detecta emoções nas mensagens de texto através do teclado do dispositivo. A patente “Melhorando mensagens de texto com informação emocional” permite que a plataforma identifique o ritmo, a pressão e a precisão da digitação do usuário e associe isso a uma característica emocional. Então, a ferramenta pode apresentar a mensagem escrita de maneira a combinar com o que você está sentindo. Se você está digitando rapidamente, a plataforma poderia, por exemplo, alterar a fonte e deixar os caracteres mais aproximados, transmitindo a mensagem visual de pressa.
A política de dados do Facebook especifica algumas das ferramentas utilizadas para a coleta de informações dos usuários, incluindo “informações de e sobre os computadores, telefones, TVs conectadas e outros dispositivos conectados à web que você usa e que se integram a nossos produtos”, além de “acesso à sua localização GPS, câmera ou fotos”. Tecnologias como reconhecimento facial, coleta de metadados de publicações, monitoramento de acesso da plataforma também são citadas.
O usuário pode decidir não permitir isso, entretanto. Mas, segundo Débora, “inibir o uso dessas ferramentas deixa a sua experiência nessas plataformas cada vez mais restritas”, e isso funciona como um incentivo à permissão mais ampla. Ela cita o exemplo da câmera: se você restringir o acesso do Facebook à câmera do seu celular, não será mais possível tirar fotos e vídeos e publicar na plataforma.
Por sua vez, a empresa apresenta essa informação com a justificativa de “melhorar a experiência do usuário”, “pesquisar e inovar para o bem social” e “promover segurança e integridade”, nos seus Termos de Serviço.
Diferente da manipulação, a modulação ocorre de maneira sutil e personalizada através de algoritmos que coletam dados dos usuários. “Você não precisa enganar a pessoa, você não precisa dar informações falsas ou dar a entender uma coisa sendo que a verdade é outra. Você na verdade está direcionando ela, orientando ela em uma certa direção, ao mesmo tempo que dá a sensação de que ela está caminhando livremente para onde ela quiser”, explica a pesquisadora Débora Machado, que analisou 39 patentes de ferramentas que modulam o comportamento.
Um exemplo de patente que pode ser considerada útil para a modulação de comportamento se chama “Filtrando comunicações relacionadas a emoções indesejadas em redes sociais”. A invenção associa emoções a diversas interações dos usuários na plataforma – comentários, mensagens, publicações, curtidas etc. Aquelas interações que forem associadas a emoções consideradas “desejadas” serão reforçadas, e as que forem consideradas “indesejadas” serão preteridas. Como exemplos de emoções indesejadas, a patente cita luto, culpa, raiva, vergonha e medo.
Para incentivar o seu bom humor, a rede social pode exibir no feed de notícias publicações às quais você reagiu positivamente no passado. A patente cita como exemplo a lembrança de ações anteriores do usuário. Isso já acontece quando o Facebook sugere posts que comemoram um aniversário ou relembram uma publicação antiga – mas não há indícios de que isso é associado ao seu estado de humor.
A consequência dessa patente, explica a pesquisadora, é que o Facebook pode, através do feed de notícias, privilegiar uma amizade em detrimento de outra ou dar preferência a certos tipos de publicações para determinados sentimentos. E isso não necessariamente corresponde aos interesses do usuário. “Eu identifico que a plataforma está mais interessada em deixar o usuário mais interativo, ou fazer ele executar uma ação específica. Eu não acho que a plataforma está muito preocupada se o que leva ele a comprar um produto, por exemplo, é ele estar triste ou estar feliz”, constata Débora.
Emoção é dinheiro:
Saber quais são as emoções dos usuários é útil para anunciantes. Os anúncios são a principal fonte de renda do Facebook, representando US$ 14,91 bilhões no primeiro semestre de 2019 – 98,8% da receita. Das 130 patentes com a palavra “emoção” registradas pela plataforma, 109 (84%) contêm também a palavra “propaganda” (advertise) em suas descrições.
“As características de personalidade inferidas são armazenadas junto aos perfis do usuário e podem ser usadas para mirar, ranquear e selecionar versões de produtos [para oferecer ao usuário] e muitas outras funções”, define uma dessas patentes.
Outras são mais explícitas. A patente “Sinais negativos para segmentação de anúncios” descreve uma ferramenta que registra interações negativas de usuários com certos conteúdos, por exemplo, a expressão de emoções tristes ou bravas, comentários ruins, reação de ira, e cria uma lista de itens com os quais o usuário não se relaciona bem – uma “lista negra”, ou blacklist, no linguajar da patente – e que não devem ser mostrados.
Procurada, a empresa afirmou que não comenta a cobertura específica de suas patentes ou razões para registrá-las. “O Facebook usa uma estratégia de patentes que não cobre apenas tecnologia usada nos produtos e serviços do Facebook, mas inclui também diferentes tipos de tecnologia. Por essas e outras razões, as patentes nunca devem ser entendidas como uma indicação de planos futuros.”
Além disso, reforçaram que não oferecem aos anunciantes a opção de direcionar anúncios com base na emoção das pessoas.
O publicitário e vice-presidente executivo da agência WMcCann, Márcio Borges, autor de dissertação sobre reações e engajamento em posts publicitários no Facebook, confirma que a segmentação por emoções não é disponível ao anunciante. “Hoje você não compra isso, mas o Facebook pode usar essas informações como forma de maximizar os resultados.” Atualmente, os anunciantes recebem a segmentação de público com base em comportamentos e interesses identificados pela rede social. “No fundo, essa informação vem pautada pelas reações, mas nós não compramos a segmentação por emoção.”
A análise das patentes pela reportagem vai na contramão do discurso pela saúde mental promovido pelo Facebook e da promessa de Mark Zuckerberg de estar trabalhando para que os usuários passem menos tempo na rede. As patentes relacionadas a emoções registradas pela marca indicam interesse de prender o usuário o máximo de tempo possível na rede. “Eu entendo que, a partir do momento que você cria uma tecnologia que faz de tudo para o usuário ficar ativo e interagindo dentro dela, isso significa que você quer que essa pessoa esteja lá interagindo a maior quantidade de tempo possível”, afirma Débora.
Os próprios botões “curtir” do Facebook e “amei” do Instagram funcionam de maneira a prender o usuário à plataforma. Quando você posta um conteúdo e recebe uma curtida, o sistema nervoso é estimulado com a produção de dopamina, assim como quando você usa uma droga.
Algumas patentes de emoção analisadas pela Pública falam claramente em tecnologias capazes de garantir a permanência do usuário na rede social. É o caso da invenção “Apresentando conteúdos adicionais para um usuário de redes sociais baseado em uma indicação de tédio”, registrada em janeiro de 2015. A ferramenta permite que uma rede social identifique níveis de tédio – como recarregamento do feed de notícias e baixa interação com publicações – e iniba essa sensação. “A rede social apresenta conteúdos alternativos através do feed de notícias ao usuário com indicativo de tédio para encorajá-lo a interagir com os conteúdos”, explica o texto da patente.
De maneira parecida, a ferramenta “reactions” também pode funcionar de maneira a incentivar a permanência do usuário na plataforma, segundo o publicitário Márcio Borges. “Quando você olha as reações, são quatro positivas ou neutras e duas negativas. É como se fosse padronizada matematicamente uma rede predominantemente positiva, porque você tem mais maneiras de expressar positividade do que manifestar negatividade. A própria maneira com a qual os botões estão dispostos, a ordem que eles têm, também vem do campo da positividade para a negatividade. As primeiras opções são positivas e as últimas negativas”, diz.
Para a pesquisadora Débora Machado, o escândalo da Cambridge Analytica só empurrou o Facebook a buscar mais maneiras de estudar o comportamento. “A partir do momento em que as pessoas se preocupam mais com o que elas divulgam sobre sua própria vida, a rede também tem que encontrar outras formas de coletar informações diversas sobre o que você está sentindo ou pensando, para poder identificar qual a melhor hora de te direcionar algum conteúdo ou te levar a realizar alguma ação específica que seja vantajosa para o modelo de negócio da plataforma ou para o objetivo final do anunciante”, afirma.
Questionado pela Pública sobre a permanência dos usuários, o Facebook respondeu que trabalha para que eles “tenham conexões significativas” dentro da plataforma e que desenvolve ferramentas para que eles tenham controle sobre a quantidade de tempo que passam nela. “Queremos que o tempo gasto no Facebook seja positivo para as pessoas. No último trimestre de 2018, por exemplo, fizemos alterações para mostrar menos vídeos virais. No total, as alterações que fizemos em 2018 reduziram o tempo gasto no Facebook em cerca de 50 milhões de horas todos os dias”, afirmou a empresa em nota.
*Ethel Rudnitzki é estudante de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. Na Pública, fez parte do Truco – projeto de fact-checking – durante as eleições de 2018 e produz reportagens sobre redes sociais e desinformação.
Rafael Oliveira é estudante de jornalismo da Escola de Comunicações e Artes da USP. Faz reportagens para a Agência Pública desde março de 2019.
Observatório da Imprensa
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