João Gilberto não foi sempre João Gilberto. Não só pelo violão inconfundível que o pai da bossa nova desenvolveu, mas pelo próprio canto — que é minimalista, apolíneo, afinadíssimo e sem firulas vocais grandiloquentes... Mas, ainda pequeno em Juazeiro, na Bahia, imitava Orlando Silva, um dos cantores mais famosos do começo do século 20. O menino cantava nos bailes da cidade, onde a vida noturna não era lá grandes coisas, ou debaixo de um tamarineiro que era um ponto de encontro da cidade.
Por isso, os admiradores de João —que anda há muito tempo recluso — podem achar graça na descoberta que o colecionador de discos carioca Cristiano Grimaldi acaba de fazer. Ele encontrou duas gravações desconhecidas, uma delas inédita, do músico. Uma é “Hino ao Sol”, de Tom Jobim e Billy Blanco. Desta, uma versão com pior qualidade já surgira havia alguns anos no YouTube, onde raridades musicais às vezes aparecem discretamente.
A outra é “Chove Lá Fora”, de Tito Madi, canção nunca gravada por João em nenhum dos seus discos — nesta, o compositor imaginava um noite muito fria, com chuva lá fora e uma “saudade enjoada” que não vai embora. O músico interpreta a canção com um vibrato —para quem não conhece, trata-se daquele tremelique na voz dos cantores ao sustentar uma nota—, quando uma das marcas de suas interpretações é justamente a ausência dessa técnica. Não chega, é claro, a ser um exemplar de um “bel canto” cheio de melodrama.
Grimaldi subiu as duas gravações sem alarde para o YouTube. O colecionador encontrou-as na casa do pesquisador, jornalista, biógrafo e colunista da Folha Ruy Castro, que contou a história da bossa nova no livro “Chega de Saudade” (Companhia das Letras).
Os registros surgiram de um conjunto de oito acetatos sem rótulo ou qualquer identificação dados a Ruy por Jonas Silva, membro do antigo conjunto vocal Os Garotos da Lua que foi substituído por João, depois de reclamações por não cantar tão bem. “O Jonas Silva ficou 20 anos me dando coisas maravilhosas. Fiquei com quase todos os discos dele”, diz Ruy.
Todo lançamento, para virar vinil, era antes gravado em uma matriz de acetato, um disco de metal com uma camada fina por cima. É um material muito frágil, e usar uma agulha mais pesada no toca-discos pode danificá-lo para sempre.
“Os discos estavam em mau estado. O acetato, como é de metal, dilata e contrai com a variação de temperatura. Mas a camada não. Por isso ela começa a trincar e a se esfarelar, perdendo o material”, diz Grimaldi.
O colecionador escolheu um, desamassou, começou a colar os pedacinhos da camada que se soltavam e botou-o para tocar. Gravou pedaço por pedaço e depois juntou-os digitalmente. Em um lado, estavam as duas gravações de João. No outro, uma banda ainda não identificada.
Não há como saber exatamente quando as canções foram gravadas nem o seu contexto. Mas é possível chegar a uma estimativa até precisa.
Pelo canto com mais vibrato do que o músico costuma usar, seria possível estimar que foram feitas antes de João ganhar mais prestígio, ao tocar o violão para Elizeth Cardoso no disco “Canção do Amor Demais” (1958) e, depois, ao lançar “Chega de Saudade” (1959).
O palpite de Grimaldi, portanto, é que as gravações são de 1957. “Acho que não são acetatos caseiros, porque estes, na época, eram gravados em 78 rotações por minuto. E esse está em 33 rotações, a mesma de um vinil normal”, diz Grimaldi.
Mas Ruy Castro acha que, como João ainda não era tão famoso naquele ano para ficar gravando acetatos assim, o mais provável é que elas sejam do segundo semestre de 1958 —“Canção do Amor Demais”, no qual o músico toca violão, afinal, saíra em maio daquele ano.
“Da volta para o Rio até a gravação de ‘Chega de Saudade’, a quantidade de casas em que ele teve que morar, porque não tinha dinheiro... Ele só se tornou alguém entre os dois discos”, afirma.
Não é a primeira vez que gravações assim aparecem. Em 2011, surgiram também no YouTube um conjunto de 38 canções gravadas por João Gilberto em um ambiente informal, a casa de Chico Pereira, fotógrafo da gravadora Odeon, que conhecera o pai da bossa nova por intermédio de Roberto Menescal e Carlos Lyra. Algumas dessas canções, registradas em 1958 com conversas pelo meio, nunca entraram em disco algum dele.
Ruy Castro conta que, durante a pesquisa para “Chega de Saudade”, teve acesso a um conjunto considerável de registros de João em diversas ocasiões. Mas afirma que ainda há gravações perdidas que poderiam ser encontradas, como o trabalho dele no mercado publicitário.
“De vez em quando alguém me manda algo. Ele cantando algum jingle... Tem um que ele gravou em São Paulo que eu não encontrei”, afirma.
Ele lembra ainda que devem haver gravações desconhecidas das faixas de “Chega de Saudade” e “O Amor, o Sorriso e a Flor”. Com certeza, outras foram feitas no dia da gravação de cada um deles.
“Como se ele tivesse acertado de primeira... Isso não é possível. Tem que ter versões alternativas e abandonadas. Da Billie Holiday, tenho gravações feitas dez vezes. Será que a Odeon jogou fora?”, questiona Ruy Castro.
Folha S.Paulo Foto-Texto-Mauricio Meirelles Foto: Ivan Cruz-Jacaré
1 comentário
03 de Apr / 2019 às 15h57
JG sempre surpreendente. Uma historia musical incomparável. João morou algum tempo na cidade do México (idos de 70). Deve haver muita coisa boa gravada por lá. quem chegar primeiro pode descobrir um tesouro. Tá dada a dica.