ARTIGO - JOÃO GRANDE

João Grande foi um mestre, no sentido mais pleno da palavra. Com ele aprendi as coisas do céu e as coisas da terra. A bem da verdade, mais as coisas da terra do que as do céu.

Do céu, aprendi que Deus não trabalha sozinho; aliás, nunca trabalhou sozinho; sempre dependeu da gente pra agir nesse mundo; aprendi que são os homens – os homens e as mulheres – quem na verdade fazem os milagres, cabendo a ele – a Deus – apenas o consentimento; os homens – os homens e a mulheres – seriam, assim, os olhos, a mente, o coração, os pés, os braços e as mãos de Deus.

Da terra, aprendi, entre tantas coisas, que o sentido da existência está no colocar-se na perspectiva do outro, já que ninguém é sozinho, um toco seco em meio à solidão do deserto; o valor das coisas está na festa da partilha; no mutirão do ter e do fazer desinteressado que cria comunhão; na mesa da acolhida fraterna donde ninguém jamais será expulso; aprendi que nada é de ninguém e, ao mesmo tempo, é de todo mundo; as terras, os montes, os rios, os bichos, tudo é de todos; a propriedade é um acinte; uma subversão da ordem; uma usurpação; um ludibrio; nada nesse mundo é nosso, a não ser o sentimento, a dor, o riso, o prazer, a possibilidade de ser ou não feliz; nada possuímos, porque, na verdade, nem a nós mesmos possuímos; ao fim e ao cabo, restará tão somente uma página vazia, amarelecida, como reminiscência de qualquer coisa (pouca coisa) que ficou para trás; nada mais do que isso.

João Grande foi um caminhante infatigável. Um fazedor de caminhos. Sua vida inteira foi um constante caminhar. Não há qualquer vereda desse mundão por onde não tenha caminhado. O caminho foi o seu pão. A sua água. O seu remédio. O seu alento: caminhou para viver. Para vencer. Para ser livre. Fez do seu caminho sua defesa. Enfrentou feras. Pisou em cobras e escorpiões. Sina de gente grande! Caminhar é próprio dos grandes. Dos guerreiros. Dos profetas. Dos menestréis. Dos sonhadores. Dos românticos. Só quem caminha é capaz de alcançar o horizonte. Caminhando, alguns conquistaram impérios. Outros arrebanharam fiéis. Outros ainda semearam sementes. Em todos eles, vibrou a chama inquietante que rompe o comodismo. Que dirige cada passo em direção à luta necessária.

João Grande foi um construtor; construiu suas próprias casas; as suas e as dos seus; e o fez com a maestria do autodidata atento e caprichoso, em nada deixando a desejar; tornou-se perito nesse mister, quase não havendo quem a ele se igualasse; assim, durante anos a fio, desfrutou de prestígio quase que absoluto; não havia construção, por mais importante que fosse, que ele não tirasse de letra; dos alicerces ao acabamento, tudo era pensado com o esmero de um artista.

João Grande, além de construir (suas casas e as dos seus), ainda produzia os materiais empregados em suas obras, como portas, janelas, vigas, cumeeiras, ripas, caibros, telhas, tijolos; era com ele, também, o feitio das ferramentas utilizadas na faina diária; fazia de um tudo, desde colheres, trenas, réguas, esquadros, prumos, formões, enxós, até serrotes, plainas e martelos; João Grande cuidava, ainda, dos utensílios de casa, dedicando-se ao fabrico de pratos, panelas, talheres, colheres de pau, xícaras, bacias, gamelas, moringas, aribés, urupembas, pilões, moinhos, cuscuzeiros, chaleiras, bules, frigideiras,  tachos, baús, e muitas outras miudezas.

João Grande não se desgrudava nunca do seu caminho. Desdobrava-se entre os afazeres de pedreiro, carpina, ferreiro e artesão. Sua rotina era nos matos, cortando e lavrando paus. Nas olarias, moldando telhas e tijolos. Ou nos fundos da própria casa, onde desempenhava o restante dos seus ofícios.

João Grande também quis cuidar da morte. Da morte dos outros e da dele. Fez-se exímio na arte de fazer caixão. E sempre que solicitado (obviamente por parte dos vivos), punha-se a serviço dos mortos. Melhor: do repouso dos mortos. A cada apelo, em auxílio de alguém que partiu dessa pra melhor, se embrenhava nos matos, facão e machado a postos, à caça dos viçosos mulungus, cujas tábuas davam forma às cerimoniosas peças fúnebres de que era encarregado.

Quem hoje passar pelo caminho, tantas vezes trilhado por João Grande, vai encontrar em algum lugar um velho mulungu de um galho só. O outro galho foi o utilizado, pelo próprio João Grande, ainda em vida, para fazer o caixão que lhe serviu de abrigo na etapa derradeira do seu perene caminhar.

José Gonçalves do Nascimento

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