A primeira semana de abril de 2018 no Brasil foi marcada por um drama histórico de proporções épicas, o julgamento do habeas corpus e posterior prisão do ex-Presidente Lula. O país inteiro acompanhou este drama, que monopolizou a cobertura da imprensa, independentemente da posição pessoal de cada cidadão sobre o tema. Não havia outro assunto no rádio, na tv, nas redes sociais. Ninguém prestava atenção em outra coisa.
Foi a cobertura perfeita para Michel Temer aproveitar e desfechar outro ataque a direitos históricos de uma categoria profissional, aprofundando a malfadada reforma trabalhista como um processo de retirada crescente de direitos dos trabalhadores. Em 4 de abril, foi publicado o decreto 9329 da Presidência da República que, alterando os termos do Decreto 84134 de 1979, despedaçou a profissão de radialista no país, coroando o esforço que as emissoras de rádio e tv há décadas faziam para liquidar com os direitos de seus trabalhadores.
Os radialistas têm uma profissão regulamentada em lei própria, a Lei 6615/78, e este diploma legal prevê um sistema de remuneração para o profissional baseado no pagamento por cada função exercida. A remuneração do radialista, portanto, não se dá simplesmente pelo emprego na radiodifusora, mas haverá de ser calculada, por expressa disposição da lei, com base em cada função que exerça dentro da empresa, prevendo um adicional que varia de 10 a 40% do salário para cada função acumulada.
E o decreto 84.134, de 1979, que regulamentou a lei 6615, descrevia 94 funções, divididas dentro dos três grupos de atividades (administração, produção e técnica) e dos 16 setores que a lei estabelece.
O novo decreto reduz estas funções para 25, ou seja, para cerca de um quarto do quadro anterior, não só eliminando algumas funções como criando novas que açambarcam num só tipo jurídico tarefas que se desdobravam em diversos outros na antiga regulamentação. A consequência do novo decreto é clara: as empresas ficam eximidas de pagar os acúmulos de funções. Os trabalhadores vão passar a ganhar menos pelo mesmo trabalho de antes. É Temer realizando num canetaço o sonho das empresas neste Brasil de uma elite medieval: mais trabalho por menos salário.
Mas antes de adentrarmos no exame do Decreto 9329 em si, e seus vários absurdos, necessário se faz estudar sua origem jurídica, que está caracterizada por inegável inconstitucionalidade.
Como dito acima, embora o decreto tipifique as funções em que se desdobra a profissão do radialista, as condições gerais para esta tipificação estão presentes na Lei 6615. Assim, não seria possível publicar um decreto como o 9329 sem, antes, modificar a lei 6615/78.
E isto se deu em 2017, através do expediente conhecido como " jabuti”, ou contrabando legislativo, que já foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Em 3 de outubro de 2016, o Governo Federal publicou a Medida Provisória 747 que tinha como objetivo em sua ementa:
Altera a Lei nº 5.785, de 23 de junho de 1972, para dispor sobre o processo de renovação do prazo das concessões e permissões dos serviços de radiodifusão.
Em sua tramitação na Câmara dos Deputados, o relator da Comissão Mista, deputado Nilson Leitão (PSDB/MT), acatou emenda da lavra do deputado Sandro Alex (PSD/PR) com o seguinte fundamento:
Por oportuno, consideramos que, no momento em que se busca modernizar as regras de renovação de outorgas, é necessária uma atualização na designação das funções dos profissionais que integram as empresas de radiodifusão, em face da obsolescência da atual regulamentação, a qual não contempla a nova miríade de profissionais de comunicação digital. Dessa forma, optamos também por acolher a contribuição estabelecida na Emenda nº 3, da lavra do Deputado Sandro Alex, que propõe uma atualização ocupacional dos profissionais que respondem pela oferta dos serviços, medida corretiva de defasagem entre as funções e sua descrição legal, destinada a proteger a empregabilidade e a sustentabilidade setorial diante das novas demandas de mercado e da radiodifusão, nesta etapa de transição tecnológica rumo à mídia digital.
É evidente que o processo de outorga e renovação de concessões de rádio e tv não tem nenhuma relação lógica e muito menos jurídica com a definição das funções a remunerar dos profissionais radialistas. A emenda transformou-se no art.7º da lei 13.424 de 2017, com a seguinte redação:
Art. 7º O art. 4º da Lei nº 6.615, de 16 de dezembro de 1978, passa a vigorar com as seguintes alterações:
"Art. 4º ....................................................................................
..................................................................................................
§ 4º As denominações e descrições das funções em que se desdobram as atividades e os setores mencionados nos §§ 1º, 2º e 3º, a serem previstas e atualizadas em regulamento, deverão considerar:
I - as ocupações e multifuncionalidades geradas pela digitalização das emissoras de radiodifusão, novas tecnologias, equipamentos e meios de informação e comunicação;
II - exclusivamente as funções técnicas ou especializadas, próprias das atividades de empresas de radiodifusão." (NR)
As principais modificações anti-trabalhadores trazidas pelo dec. 9329 não seriam juridicamente possíveis sem a inclusão do conceito de multifuncionalidade na lei e sem a inclusão do inciso II supratranscrito que autoriza a retirada do quadro de tipificações de funções de quaisquer atividades que não forem exclusivas de emissoras de rádio e tv. Sem a lei 13.424 não seria possível o dec. 9329.
Em outubro de 2015, por intermédio da ADI 5127, o STF debateu a constitucionalidade da Lei 12249/2010. Muito embora dita ADI tenha sido julgada improcedente, nossa corte suprema decidiu que a prática do contrabando legislativo contrariava a Constituição e julgou da seguinte maneira:
O Tribunal, por maioria, julgou improcedente o pedido formulado na ação Direta com cientificação do Poder Legislativo de que o Supremo Tribunal Federal Afirmou, com efeitos ex nunc, não ser compatível com a Constituição a apresentação de emendas sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida a sua apreciação, vencidos os Ministros Rosa Weber (Relatora), Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, que julgavam procedente o pedido, e, em maior extensão, o Ministro Dias Toffoli, que o julgava improcedente. Redigirá o acórdão o Ministro Edson Fachin. Presidiu o julgamento o Ministro Ricardo Lewandowski.
- Plenário, 15.10.2015.
- Acórdão, DJ 11.05.2016.
Por óbvio o conceito de pertinência temática haverá de ser interpretado de forma restritiva, eis que as Medidas Provisórias são uma exceção no processo legislativo e seu escopo não pode ser alargado de forma indeterminada. Assim, ao decidir-se acerca de renovação de concessões não estão automaticamente autorizadas emendas sobre qualquer assunto relativo à radiodifusão, mas apenas aquelas relativas à outorga de concessão ou renovação destas. E, repita-se, não há relação jurídica possível entre renovação de concessão e tipificação das funções a remunerar do profissional radialista.
Conclui-se, portanto, que o art. 7º da lei 13424/17, que traz alterações ao art.4º da lei 6615/78, é inconstitucional, ainda que por razão formal. Assim, não poderá subsistir o Decreto 9329/18, como se verá a seguir.
São tantos os abusos e as violências cometidas contra os direitos dos trabalhadores radialistas no texto do Dec. 9329 que um exame minimamente completo demandaria muito mais do que este artigo se propõe a fazer.Vamos, porém, selecionar alguns exemplos para demonstrar o que foi feito, com base na mudança trazida pela lei 13424/17.
Recordemos que a lei 6615 prevê três grupos de atividade (administração, produção e técnica) e que estes eram desdobrados em 16 setores e tipificados em 94 funções. No grupo Administração, havia 1 única função, que foi extinta, (rádio e tv fiscal) e substituída por outra, nova (controlador de operações), provavelmente para evitar que o novel decreto contrariasse a lei ao extinguir completamente algo expressamente previsto para a regulamentação. No grupo Produção, as 58 funções foram reduzidas para 14. E no grupo Técnica, das 35 funções sobraram 10.
O exame das alterações feitas demonstrará que seu conteúdo foi muito mais longe do que a "atualização ocupacional" e a " correção das defasagens” em face do avanço tecnológico que justificaram a alteração legislativa e o decreto que lhe seguiu, como vimos, acima, do Relatório da Comissão Mista da Câmara dos Deputados.
Não há, por exemplo, nenhuma evolução tecnológica que justifique que as 7 funções de Locutor previstas no texto anterior do Decreto (Locutor anunciador; apresentador-animador; comentarista esportivo; locutor esportivo; noticiarista de rádio; noticiarista de televisão e entrevistador) sejam unificadas numa única função, Locutor Comunicador.
Esta fusão de funções é apenas a expressão concreta do conceito, ideológico, de multifuncionalidade, trazido pela lei 13.724, para obrigar que o profissional radialista que antes apresentava um programa de notícias e depois comentava jogos de futebol e recebia por estas duas funções, agora continuará fazendo ambas, mas a empresa não precisará pagar o acúmulo de funções.
O inciso II introduzido no art. 4º da Lei 6615/78 pela lei 13.724, que já citamos acima, é a base para a extinção completa do setor de manutenção técnica, que previa 9 funções no antigo texto do decreto 84134. Mas ainda que pudesse ser invocado para descaracterizar como função de radialista as tarefas de mecânico, eletricista ou técnico de ar condicionado, é a pura ganância patronal que extingue funções como técnico de áudio, de manutenção de rádio ou manutenção de televisão, eis que estas tarefas continuarão a ser exercidas, mas agora por alguém sem a proteção da legislação, e sem os acúmulos de função...
Não há dúvidas de que o Quadro Anexo das funções de radialista devia ser atualizado, em face do avanço tecnológico, com a extinção de algumas funções que efetivamente não mais existem (como operador de telecine ou encarregado de cinema) e a adaptação de outras que ainda existem, mas que agregaram conteúdo em face dos novos recursos digitais, como operador de máquina de caracteres.
Mas não é isto o que Dec.9329 faz. O avanço tecnológico é apenas o pano de fundo para que o texto do decreto revogue os princípios da legislação do radialista. A tipificação de tantas funções no Quadro Anexo tem como fundamento que o trabalhador radialista é remunerado por responsabilidade técnica e não pelo somatório simples de tarefas.
Peguemos um exemplo da " antiga tecnologia" para entender a lógica. O decreto previa Operador de Câmera e Operador de Cabo. Toda câmera tinha cabos na época. Assim, a responsabilidade de captar a imagem da melhor forma possível caracterizava o Operador da Câmera. A responsabilidade de manter o equipamento conectado e em movimento, o que envolvia uma miríade de cabos à época, caracterizava o Operador de Cabo. Se o mesmo trabalhador tivesse que captar a imagem e cuidar da conexão, recebia pelas duas responsabilidades técnicas diferentes.
Ainda que a evolução tecnológica permita concentrar tarefas num só equipamento, nem sempre poderá descaracterizar como responsabilidades técnicas diferentes. Assim, a nova função de Editor de Mídia Audiovisual, introduzida pelo Dec. 9329, contraria o princípio básico da legislação, eis que exige do radialista que formate o programa por meio " de imagem e de áudio”, e nenhuma nova tecnologia e nenhum novo equipamento podem fazer com que não sejam duas responsabilidades técnicas distintas: formatar o som e formatar a imagem. E isto obrigatoriamente demanda, pela lei 6615/78, remuneração por acúmulo de funções, não podendo estas tarefas serem reunidas numa só função.
Em conclusão, verifica-se que Michel Temer, aproveitando-se de que todo o Brasil olhava para outro lado, editou em 4 de abril decreto que perpetra imensa violência contra os direitos dos trabalhadores radialistas, fundado em alteração legislativa inconstitucional e, muito provavelmente, pagando dívida política para as grandes emissoras de rádio e tv que apoiam seu pífio governo. Se é verdade que a evolução tecnológica demanda atualização do Quadro Anexo de funções do decreto 84134/79, esta se deve dar através de meios legítimos, respeitando a Constituição e os princípios da legislação especial do radialista e com a participação dos representantes desta categoria profissional.
Dr. Antônio Escosteguy Castro – Advogado dos Radialistas
Fonte: Sinterpba
6 comentários
15 de Apr / 2018 às 09h15
É a ira de Temer.
15 de Apr / 2018 às 10h06
O cara entrou na Presidência pela janela, o povo o detesta , não tem capacidade de se eleger nem como vereador, a única maneira que ele encontra pra satisfazer a sua vingança, é exatamente isso, caçar os direitos dos trabalhadores.
15 de Apr / 2018 às 10h13
LAMENTÁVEL é essa presepada do "presidente impopular" em mexer com as funções dos profissionais de rádio. Quero ver se ele é "macho" assim para mexer também com a nossa unida classe de JORNALISTAS! Aqui ele sabe que o buraco é "bem mais em baixo!" ERRY JUSTO Radialista e Jornalista
15 de Apr / 2018 às 13h44
Pois é. Estão provando do veneno. Muitos de vocês, a maioria, estavam alegres com a queda do PT, (Dilma e suas pedaladas) é engraçado - Vocês como a maioria da população deste país pensavam que o PT era o demônio, e ai. É a reforma trabalhista chegando em vocês, infelizmente. Alkmin do PSDB, teve os seus processos enviados para a Justiça eleitoral, não vi vocês falarem nisso. O PT é o demônio. KKKKKKKKKKKKKKKKKKK
15 de Apr / 2018 às 21h44
Quem colocou Temer como vice foram os comunistas do PT, do Fórum de São Paulo, e levaram um chute no traseiro. Achavam que Temer iria apoiar os corruPTos. Bem feito. Agora, se Temer esta metendo os pés pelas mãos, sabe que a hora dele vai chegar. Bolsonaro 2018 no primeiro turno.
17 de Apr / 2018 às 20h29
DE PARABÉNS OS BRAVOS RADIALISTAS DA VIDA, QUE GRITAVAM E VIBRAVAM. FORA DILMA, FORA PT KKKKKKKKKKKKKKK