A Polícia Civil do Ceará vai abrir um procedimento para investigar as falas do vereador Eúde Lucas (PDT), presidente da Câmara Municipal de Jucás, no interior do Ceará, sobre pessoas com autismo.
Em discurso no plenário da Casa, Eúde citou que perdeu o autismo "na peia" ou "na chibata".
Conforme a Delegacia Municipal de Jucás, a análise das falas do vereador vai embasar o inquérito policial, que deve apurar se o parlamentar cometeu o crime de discriminação contra pessoa com deficiência, como previsto no artigo 88 da lei 15.146/15.
Em pronunciamento na quarta-feira (20), transmitido online pela Câmara de Vereadores do município, Eúde inicialmente esnobou mensagens de apoio à atriz Letícia Sabatella, que no domingo (17), falou ao Fantástico sobre ter recebido o diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista (TEA).
"Tem uma declaração que os artistas, os autores, sei lá... tá rondando. Eu digo 'eu era autista', só que meu pai tirou o autista na peia. Naquele tempo tirava autista era na chibata. Porque era um menino meio traquina", afirmou.
Em nota, Eúde Lucas afirmou que não teve a intenção de ofender, que se expressou de maneira equivocada e lamentou "profundamente que tenha sido mal interpretado". O vereador também afirmou que, em sua fala, estava se referindo ao próprio passado, uma vez que recebeu este tratamento do seu próprio pai.
Conforme o Ministério da Saúde, o Transtorno do Espectro Autista (TEA) é um "distúrbio caracterizado pela alteração das funções do neurodesenvolvimento". A pessoa diagnosticada pode ter alterações na comunicação, na interação social e no comportamento.
Ainda conforme a pasta, é comum em pessoas com TEA apresentar ações repetitivas, hiperfoco para objetos específicos e restrição de interesses.
Ao g1, o advogado Emerson Damasceno, presidente da Comissão Especial de Defesa dos Direitos da Pessoa com Autismo da OAB Nacional, informou que a comissão já está estudando as medidas que pode adotar contra o fala do vereador.
“É no mínimo muito lamentável que isso seja reverberado dessa forma numa Casa Legislativa”, afirma Damasceno, que também é presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB no Ceará.
“Obviamente [deficiência] não é algo a ser tratado com violência, não é algo que será expurgado, não é algo a ser curado. A deficiência é uma característica de milhões de pessoas no âmbito do país”, aponta. “E obviamente não é algo a ser tratado desta forma discriminatória, perigosa e que inclusive pode ensejar mais violência, mais discriminação, mais exclusão e mais capacitismo”.
Conforme Damasceno, a OAB Ceará já atuou em casos semelhantes, como no processo movido contra o humorista Léo Lins em 2022 após o carioca fazer uma “piada” sobre uma criança cearense com hidrocefalia.
No caso da fala do vereador Eúde Lucas, o advogado aponta que ele pode ser enquadrado pela Lei Brasileira de Inclusão, aprovada em 2015, e que a OAB pode entrar com uma representação contra o parlamentar.
“A discriminação de pessoas em face de sua deficiência é tipificada como crime no país, ela pode punir de 1 a 3 anos de reclusão, além de multa. E se for feita através de mecanismo de comunicação social, de dois a cinco anos de reclusão. Então se [o discurso] vier a ser tipificado como discriminação, isso pode levar a condenação de uma pessoa de dois até cinco anos”, indica.
Para Emerson Damasceno, que atua na advocacia há mais de 20 anos, o Judiciário brasileiro tem se modernizado e entendido as demandas de pessoas que entram com processos envolvendo discriminação por conta de deficiência.
“O número de denúncias vem aumentando de forma contundente, as pessoas estão muito mais informadas sobre os seus direitos, as pessoas não estão mais deixando passar esse tipo de situação porque elas já sabem que não é uma situação que deva ser deixada de lado, que aquilo ali pode ser caracterizado como crime. E o Judiciário quando provocado está começando a fazer a jurisprudência necessária”, afirma.
Conforme o presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB no Ceará, as seccionais da OAB no Brasil têm sido mais atuantes contra este tipo de conduta, e as instâncias judiciárias têm correspondido, apesar de “algumas decisões discrepantes”.
“É muito importante que as pessoas cada vez mais saibam que não se trata de uma mera brincadeira, que não é brincadeira, que não é humor, que não é só uma opinião. Opinião eu tenho direito de dar, você tem o direito de estar, mas também tem o dever de responder por aquilo que você eventualmente comete através da liberdade de expressão", completa.
Acolhimento e dedicação-Conforme o Ministério da Saúde, dentro do Transtorno do Espectro Autista, algumas pessoas têm graus leves dentro do espectro e vivem "com total independência, apresentando discretas dificuldades de adaptação"; outras têm níveis mais avançados e vivem em "total dependência" para realizar as atividades cotidianas.
De acordo com o Ministério da Saúde, fazem parte do tratamento a pessoas com transtorno de espectro autista o acolhimento e maior dedicação.
"O cuidado à pessoa com TEA exige da família extensos e permanentes períodos de dedicação, provocando, em muitos casos, a diminuição das atividades de trabalho, lazer e até de negligência aos cuidados à saúde dos membros da família."
As diretrizes do ministério sobre o tratamento de pessoas autistas não faz qualquer referência à "peia" ou "chibata".
g1 Ce Foto Camara Municipal de Vereadores
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