Professor comparou a abertura dos canais que levam as águas do Velho Chico para os rios da Paraíba e do Ceará com feridas no ecossistema

Há 13 anos Livro reuniu trabalho de 99 biólogos e 40 instituições para registrar a biodiversidade e a beleza de 1.031 espécies de plantas na Caatinga.

Esqueça as imagens clássicas da Caatinga com a terra rachada, a paisagem marrom, seca, e com uma caveira de gado para compor o cenário. Essas fotos registram uma visão repetida até a exaustão nos noticiários em épocas de seca e nos teledramas regionais.

É um recorte. O único bioma exclusivamente brasileiro é maior e mais atraente. Possui cores e diversidade, desafios e soluções, como retrata o livro Flora das Caatingas do Rio São Francisco – História natural e conservação. Confira reportagem de Celso Calheiros na integra Aqui-(o)ecojornalismoambiental.

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O trabalho tomou 4 anos e foi organizado pelo professor José Alves de Siqueira. Ele apresenta 1.031 registros de espécies de plantas e comprova, com rigor científico, a riqueza da flora da Caatinga. Ou melhor, das Caatingas, como prefere o titular do Centro de Referência em Recuperação de Áreas Degradadas (Crad) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).  “Queremos quebrar um mito que, em algum momento, se formou. Diferentemente das reportagens sensacionais, somos diversos e heterogêneos e isso é bom”, avisa o autor.

José Alves liderou o trabalho, mas teve companhia. Ele divide a autoria com mais 99 pesquisadores e 39 instituições, além da Univasf. O prefácio é do professor Marcelo Tabarelli, coordenador da área de biodiversidade da Capes, além de autor de Ecologia e conservação da Caatinga. O capítulo sobre cactos tem a participação de Nigel Paul Taylor, estudioso do Royal Botanic Gardens, com trabalhos em ecossistemas áridos em diferentes recantos das Américas.

Os autores rodaram 340 mil quilômetros em 212 expedições para escrever as suas 515 páginas. O livro é um profundo trabalho sobre a flora da Caatinga, mas vai além e propõe estratégias para conservação do bioma, faz um estudo detalhado das plantas aquáticas do semiárido mais populoso do mundo e produz um modelo analítico sobre a distribuição de árvores nativas. Dedica um capítulo inteiro aos cactos (dos quais 90% estão ameaçados), revisa o que já foi escrito sobre as sementes da biota e alerta sobre a ameaça de invasão biológica que a região enfrenta, diz Siqueira.

A professora Dilosa Carvalho de Alencar Barbosa afirma que o livro acaba com um hiato de publicações científicas a respeito da fisiologia das plantas da Caatinga. “Mário Guimarães Ferri, da USP, publicou, em 1955. Depois, em 1981, eu também publiquei um trabalho científico”, lembra Diloso. “Até agora, nenhuma outra publicação voltou a tratar a flora da Caatinga”. Ela é uma das 4 autoras do capítulo sobre sementes.

O trabalho surgiu como subproduto da transposição do Rio São Francisco, uma vez que o Crad assumiu um dos 38 programas ambientais exigidos pelo Ibama para a execução da obra. Professores e alunos do Crad se depararam com uma obra de engenharia que se estende por 700 quilômetros, em 2 canais cimentados, 29 reservatórios, estações de bombeamento e pequenas usinas. “Uma obra colossal”, sintetiza Siqueira. Ele coordenou e executou o programa de conservação da flora com a coleta de plantas (vivas e mortas) e sementes, além do monitoramento da da flora sob impacto da obra. “Com olhos de biólogo da conservação, posso afirmar que, muito do que vi, foi chocante”, diz.

Siqueira compara a abertura dos canais que levam as águas do Velho Chico para os rios da Paraíba e do Ceará com feridas no ecossistema feitas por tratores e escavadeiras. O corte exposto dos canais abre espaço para organismos oportunistas. No obra, verificou-se 62 espécies de plantas exóticas, 6 destas invasoras, e 3 espécies vistas pela primeira vez no país: Azolla pinnata R, Physalis pruinosa L e Enneapogon cenchroides. Siqueira e o pesquisador Juliano Fabricante classificam a invasão biológica como a segunda maior ameaça à biodiversidade, perdendo só para a destruição de habitats provocada pelo homem.

A conservação da biota e restauração de áreas afetadas pela ação do homem é outro tópico. Siqueira conta que foram selecionadas 17 espécies de árvores e feito um estudo sobre suas preferências de tipo de solo, índice pluviométrico e clima. Cruzou-se os dados com levantamentos sobre os diferentes tipos de solo, quantidade de chuva e variação de temperatura de localidades ao longo da bacia hidrográfica do São Francisco. O resultado permite saber onde é mais provável encontrar indivíduos de cada espécie. Um gestor ambiental interessado em restaurar um ambiente pode descobrir, com o levantamento, quais espécies de árvores se adaptam ou têm chances em cada região.

“Esse trabalho apenas começou, nossa meta é estender essa modelagem para 100 espécies de arbóreas”, diz Siqueira. O livro impressiona pela quantidade de dados científicos, mas também captura os olhos pelo plasticidade das fotografias, a maioria produzida pelo próprio Siqueira.

As imagens permitem conferir texturas e detalhes entre as penugens nas folhas, mostra flores que só desabrocham na escuridão. Em outras, revelam a fauna local, como as fotos do raro tatu-bola.

O leitor ainda lerá relatos dos primeiros naturalistas que viajaram pela região. Esse material mostra como a região se transformou e o quanto já perdeu.

Flora das Caatingas do Rio São Francisco acaba de chegar às prateleiras das livrarias, onde seu tamanho, maior que um dicionário Aurélio, a torna fácil de encontrar. Mas é longa a viagem para conhecer as maravilhas que a Caatinga pode oferecer. Ou melhor, as várias Caatingas descobertas pelos autores.

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