Artigo - Fim da escala 6x1?

Fiquei surpreso com a repercussão, recentemente, de um projeto de PEC da deputada Erika Hilton.

A deputada propõe a mudança na redação do artigo 7º da Constituição de modo que haja redução da jornada de trabalho para quatro dias na semana e das horas trabalhadas para 36 horas semanais, em vez das 44 atuais.

Como justificativa, a deputada afirma que os trabalhadores "sempre buscaram reduzir o tempo de trabalho, sem ter seus salários diminuídos, por isso, cumpre ao Congresso Nacional avançar na redução da jornada de trabalho e propor medidas para impedir que empregadores subvertem os direitos ao tempo livre remunerado conquistado pelos trabalhadores".

Na visão da deputada, a escala 6 x 1 "tira do trabalhador o direito de passar tempo com sua família, de cuidar de si, de se divertir, de procurar outro emprego ou até mesmo se qualificar para um emprego melhor". "A escala 6x1 é uma prisão, e é incompatível com a dignidade do trabalhador". Posto isto, podemos refletir sobre o tema de várias formas.

Política pública baseada em evidências

Para análises desse tipo, sou adepto das políticas públicas baseadas em evidências. Imagino que qualquer alteração que seja feita, deve ser pautada pelo método científico. Sem um estudo rigoroso, as discussões tornam-se bate boca e polarização, coisa que já temos em demasia atualmente. Como exemplo, podemos citar a questão da inclusão das câmeras corporais na Polícia do Estado de São Paulo.

O Coronel Cabanas comandou uma implementação exemplar e um estudo baseado em evidências que provaram a eficácia da medida. Com as câmeras, reduziu-se a letalidade e os ferimentos, sem haver impactos nas ocorrências. Por meio de evidências, chegou-se a uma conclusão sólida, muito devido aos protocolos faseados de implementação. Enfim, exemplo de construção de conhecimento que nos fará avançar como sociedade.

No caso da jornada de 6x1, podemos pensar de forma similar: como realizar experimentos, entendendo a realidade de países que já fizeram isso, para implementar uma mudança dessas sem impactar indicadores de geração de riqueza do país? Como garantir uma jornada de trabalho mais produtiva, sem causar inflação, aumento de custos, redução de salários, queda no PIB entre outras?

Aqui está a oportunidade de crescimento do país, tanto em qualidade de vida percebida pelos trabalhadores, como em geração de renda percebida por toda a nação. Para isso, precisamos atacar o problema com metodologia e nos perguntar, de forma sincera e honesta, o porquê as coisas são do jeito que são.

Por que a nossa jornada é 6x1?

Sempre que chego em uma empresa para fazer um projeto de Melhoria de Processos, aprendi a fazer essa pergunta: por que as coisas são assim? Geralmente, há três respostas:

1- Razões históricas. Alguém determinou isso em algum momento e nunca mais questionamos essa decisão;

2- Razões legais: Há uma legislação específica que regulamente a maneira de fazer algo. Fazer diferente é incorrer em crime;

3- Razões físicas: Não há tecnologia ou outra forma disponível.

Qual dessas vocês acham que mais encontramos? Razões históricas é a mais dominante. E, sendo assim, sempre podemos questioná-la. No caso da jornada flexível, penso haver um mix das 3. Há razões históricas, pois deve ter sido uma negociação complicada quando foi feita lá atrás, em 1934. Foi na Constituição de 1934 que o limite de 8 horas diárias foi estipulado. Antes, cada empresa adotava sua jornada, com algumas chegando a 18 horas.

Como virou algo constitucional, também se tornou razão legal. E, dada a tecnologia disponível na época, foi durante muito tempo uma razão física. Com esse histórico, pode-se questionar as 3 razões e, como a deputada coloca, propor até uma mudança legal. Agora, para questionar com seriedade e método as razões, deve-se utilizar o método científico.

A discussão deveria começar pela pergunta: por que nossa jornada é de 44 horas e 6x1?

Tomando apenas a questão legal, porque a Constituição diz isso. Se pararmos a pesquisa aqui, pode-se dizer: então façamos uma PEC e alteremos a carta magna. Afinal, a razão legal não mais estará presente. E, com uma jornada menor, os ganhos de produtividade iriam compensar a redução de horas, tornando a vida do trabalhador melhor sem causar impacto ao PIB. Mas será?

Uma boa análise é feita por Willians Gaspar em sua dissertação "A correlação entre jornada de trabalho e produtividade: uma perspectiva macroeconômica entre países". Para dar uma compreensão do tamanho da complexidade e da necessidade de discutir o tema com seriedade, ele conclui:

"embora na análise dos dados secundários…, nos países selecionados, ter evidenciado uma correlação negativa (invertida) entre as variáveis Jornada de Trabalho e Produtividade, além de outras pesquisas em momentos distintos também indicarem a mesma evidência, acreditamos que há de se aprofundar em vários outros aspectos e que não obteremos uma resposta conclusiva, pelo menos em curto prazo… o problema é multivariado e muito já foi discutido a respeito. Entretanto ainda há muito a ser debatido. Pela revisão da literatura observou-se que há várias correntes teóricas a respeito do tema".

Frente a essa conclusão, alguém poderia relacionar a jornada do Brasil a sua baixa produtividade. Quando se olha para a produtividade do trabalhador no Brasil, o motivo mais associado é que nossa produtividade é de apenas 25% da produtividade dos Estados Unidos. Além disso, nos últimos 40 anos, a taxa média de crescimento da produtividade do trabalhador brasileiro foi de 0,6% ao ano, uma das mais baixas do mundo. Dessa forma, reduzir as horas trabalhadas impactará de maneira significativa no PIB, haja vista que precisamos trabalhar mais para produzir a mesma riqueza que outros países.

O problema desse argumento, como mostrou Gaspar em sua dissertação, é que reduzir a jornada poderia não impactar no PIB. Para fins de exemplificação, a produtividade em dólares por hora trabalhada no ano de 2019 foi:

Brasil: 19,19 dólares;

EUA: 73,3 dólares;

Portugal: 35,1 dólares;

México: 20,3 dólares;

China: 11,7 dólares;

Índia: 8,7 dólares.

Segundo a OCDE, o número de horas trabalhadas por ano em 2022 em alguns países é de:

Colômbia: 2.297 horas por ano, ou 44,17 horas por semana;

Estados Unidos: 1.804 horas por ano, ou 34,7 horas por semana;

Alemanha: 1.347 horas por ano, ou 25,9 horas por semana;

Portugal: 1.635 horas por ano, ou 31,44 horas por semana;

México: 2.226 horas por ano, ou 42,8 horas por semana;

Dados de 2022 de países fora da OCDE:

Brasil: 1.970 horas por ano, ou 37,9 horas por semana;

China: 2.392 horas por ano, ou 46,0 horas por semana;

Índia: 2.480 horas por ano, ou 47,7 horas por semana.

Pelos dados, fica claro o argumento de Gaspar. Índia e China precisam trabalhar mais para entregar o seu PIB, porque são menos produtivas. Ou será que são menos produtivas porque trabalham mais? O que dá para analisar é que o valor do produto do trabalho de menos horas tende a ser maior, simplesmente porque haverá um denominador menor para dividir. Além disso, tendo menos mão de obra disponível, o custo dela tenderá a subir e soluções tecnológicas hoje disponíveis passarão a ser mais vantajosas, o que no longo prazo, poderá elevar substancialmente a nossa produtividade.

E a felicidade nos países de menor jornada, será que é melhor?

Desde 2002, o World Happiness Report usa análise estatística para determinar os países mais felizes do mundo. Portanto, comparar o nível de felicidade por esse ranking pode ser um bom argumento a favor ou contra a alteração na jornada. Segundo ele, temos:

Brasil: 6,27;

Colômbia: 5,7;

Alemanha: 6,72;

EUA: 6,73;

Portugal: 6,03;

México: 6,68;

China: 5,97;

Índia: 4,05.

Pelo visto, com Alemanha e México estando próximos, o ranking não é um bom preditor. A felicidade medida por esse ranking, provavelmente não será impactada de maneira significativa se houver alterações. Mas será que este ranking é bom para medir a felicidade? Sei não, hein… você pode argumentar. Concordo com seu ponto, meu único objetivo é trazer dados para tornar mais fundamentada em evidências a discussão sobre o 6x1.

Há formas de melhorar a produtividade, além da jornada de trabalho?

Claro. Se perguntarmos as razões para diferentes pessoas, ouviremos as mais diferentes respostas. Haverá gente culpando a logística, a infraestrutura, a carga tributária, a violência, a baixa escolaridade, a bagunça tributária, o clima, a política, enfim, vamos nos acabar afogados nas possíveis causas. Como alguém da área de melhoria, penso que deveríamos reforçar a pergunta: por que a produtividade é sempre abordada em uma análise tão macro?

É como tentar resolver o problema do Brasil falando: precisamos melhorar a saúde da população: "Vi que nossa expectativa de vida, por exemplo, está baixa. Precisamos aumentá-la". Ninguém mais trata saúde desse modo. Cada doença exige um estudo aprofundado, tanto na forma de tratá-la, como na disseminação dessas formas ao cidadão.

Para produtividade, deveríamos adotar política semelhante. Qual é o fator que mais prejudica nossa produtividade, a ponto de inviabilizar uma jornada de trabalho de 36 horas semanais? Quais as mudanças que precisam ser feitas para atacá-lo? Quais estratégias os 3 níveis de governo deveriam adotar para viabilizá-la?

Portanto, antes de afirmarmos ser essa uma discussão proibida, a provocação feita pela deputada é válida e um grupo de trabalho deveria ser constituído. Digo mais, poderia ser uma meta do governo para 2 ou 3 anos, a depender da dinâmica dos trabalhos. Dessa forma, a mudança será feita e planejada para atender aos dois objetivos: trazer mais qualidade de vida percebida ao trabalhador, sem incorrer em perdas para a renda do Brasil. E, como dizemos nos projetos em empresas, não há mais razões que impossibilitem a jornada reduzida, seja tecnológica, histórica ou legal. O que precisamos é desenvolver o método de implementação que utilize tudo que há disponível para isso, sem atropelos.

Virgilio Marques dos Santos é um dos fundadores da FM2S, gestor de carreiras, doutor, mestre e graduado em Engenharia Mecânica pela Unicamp e Master Black Belt pela mesma Universidade. TEDx Speaker, foi professor dos cursos de Black Belt, Green Belt e especialização em Gestão e Estratégia de Empresas da Unicamp, assim como de outras universidades e cursos de pós-graduação. Atuou como gerente de processos e melhoria em empresa de bebidas e foi um dos idealizadores do Desafio Unicamp de Inovação Tecnológica.