No conjunto dos artefatos criados por Mestre Espedito Seleiro estão ancorados elementos decorativos e técnicas ancestrais no trato com o couro aportados no Brasil colônia por uma gama variada de imigrantes. Quem visita o Museu do Ciclo do Couro, em Nova Olinda, no Cariri cearense, inevitavelmente é tomado por um encantamento ao ver as cores e formas das peças e as ferramentas que compõem o acervo pessoal do artesão Espedito Veloso de Carvalho, 85 anos, completados nesta terça-feira 29 de outubro.
O artesão explica que o ofício, que faz parte do sustento e da identidade da família há cinco gerações é hoje sobrenome e assinatura das produções em couro que ele entrega ao mundo. Espedito escrito com s de sertão e de seleiro. Sua arte já foi apresentada em eventos de moda, exposições, novelas, filmes, livros, reportagens, pesquisas, entre outros.
“Trabalhar com o artesanato, com o couro, foi o que Deus me deu, e é o que eu acho bom. Não existe preguiça, falta de coragem, nem de memória para fazer o que eu quero. Toda a família está envolvida; neto, filho, sobrinho, primo, irmão; e algum vizinho que está desempregado, não tendo o que fazer, eu digo: venha para o couro”, garante Espedito.
A REDEGN fez uma visita a seu ateliê, localizado próximo ao Museu, Espedito Seleiro. Lá, ele recebe os visitantes com o bom humor e a amabilidade que lhe são características. Faz por gostar mesmo, já que o reconhecimento por seu trabalho há muito tempo ultrapassou a questão da comercialidade. O que ele produz é patrimônio cultural brasileiro. Mas, ao ser perguntado sobre como foi receber a Medalha da Abolição 2020-2022, expressa modéstia.
“Para mim foi uma satisfação, porque eu não sabia nem seu merecia. Ele [governador na época Camilo Santana] me ligou numa boca de noite, conversou, e me avisou que eu ia ser homenageado. Aí eu só tenho que agradecer a Deus e ao povo que está vendo o meu trabalho, que eu faço todo o carinho e gosto”, ressalta.
A comenda, instituída em 1963, reconhece o trabalho relevante de brasileiros para o Estado do Ceará ou para o Brasil.
Nascido em 29 de outubro de 1939 em Arneiroz, cidade do Sertão dos Inhamuns, Espedito Seleiro representa não apenas a cultura e a criatividade cearense, mas também é figura importante do Nordeste brasileiro. Em razão disso, o Governo do Ceará, por meio da Secretaria da Cultura do Estado, já reconhece o artesão como um dos Tesouros Vivos da Cultura. Espedito é um Mestre da Cultura do Ceará, sendo um difusor de tradições, da história e da identidade, atuando no repasse de seus saberes e experiências às novas gerações.
O Museu do Couro também está incluído na rota dos Museus Orgânicos do Cariri, um projeto que é fruto da parceria entre o Serviço Social do Comércio (Sesc) e a Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri (FGC). A iniciativa tem o propósito de ressignificar a casa dos Mestres e das Mestras, transformando-as em lugares de memória afetiva com possibilidade de visitação e movimento do turismo local.
Toda a sabedoria que Espedito costura no couro até hoje começou a ser aprendida quando ele ainda era menino, na década de 1940. Ao ver o pai, Raimundo Pinto de Carvalho, que era vaqueiro e agricultor, fabricando selas e trajes dos vaqueiros sertanejos (chapéu de couro, gibão, peitoral, luvas, entre outras peças), a criança brincava com os cortes que caiam no chão enquanto desenhava o próprio futuro.
“O meu pai trabalhava com o meu avô [Gonçalo Pinto de Carvalho], e eu comecei, aos 8 anos, a trabalhar com ele também. Em 1958, meu pai viajou para o Sertão [dos Inhamuns] de novo. Então eu montei a oficina por minha conta, e fiquei trabalhando”, rememora.
Quando o pai faleceu, em 1971, Espedito Seleiro levou a mãe, Maria Pastora Veloso, e os irmãos para dentro da oficina em Nova Olinda. “Eu sou o mais velho de todos. Caí na besteira de nascer primeiro, e me lasquei. Trabalhei para criar os outros mais novos. Trouxe eles, botei dentro da oficina, e ensinei”, diz sorrindo.
O jovem artesão utilizou por muito tempo modelos deixados pelo pai que, além de confeccionar as peças para vaqueiros, chegou a produzir uma sandália para Lampião, a pedido do próprio cangaceiro. “Eu aproveitei o modelo que ele deixou da sandália que ele fez para Lampião. Com muito tempo, eu modifiquei os moldes, inovei, e criei estilo próprio. O modelo é de Lampião, mas o estilo é de Espedito Seleiro”, considera.
A inovação foi o ponto de virada para que Espedito deixasse de atender apenas vaqueiros, tropeiros e ciganos, cujo atendimento foi ficando cada vez mais escasso ao longo do tempo. A técnica foi se aperfeiçoando em meio às dificuldades. “Eu passei uns 50 anos ou mais para pegar conhecimento. Eu sofria. Andava com saco cheio de sela, sapato e sandália na cabeça, pegando feira para aqui e para acolá. Um dia, depois de uma feira, cheguei liso e sem dinheiro. Bebi um porre de lá para cá, e disse à mulher [Francisca de Brito Carvalho, sua esposa]: a partir de hoje, eu não vou mais andar em feira vendendo a ninguém. Se Deus quiser, e ele vai querer porque é bonzinho, eu vou dar um jeito do pessoal vir para cá, conhecer a nossa oficina, comprar o nosso trabalho, e vai dar tudo certo”, relata o artesão, que tentou desistir do ofício algumas vezes.
Depois, criou outras modelos como a versão Maria Bonita, sandália feminina com a qual presenteou Violeta Arraes, reitora da Universidade do Cariri (Urca) à época. “Ela tinha um conhecimento grande com os artistas até de fora do Brasil. Ela botou a sandália no pé, e quando os artistas viam, perguntavam onde ela tinha comprado. Ela dizia que era um rapaz de Nova Olinda que produzia. Ela voltava com uma lista grande, chegava no meu pé e dizia que eu tinha que fazer”, lembra.
Outros primeiros passos dessa nova fase vieram acompanhados de Alemberg Quindins, músico, pesquisador e fundador da Fundação Casa Grande, que encontrou nas mãos de Espedito Seleiro a resposta para um desejo: a sandália no modelo que Lampião usava. “Eu fiz a sandália dele no modelo do Lampião. Fiz os coloridinhos para ficar bonitinho. Não fiz o solado quadrado porque você [Alemberg Quindins] anda igual burra de padre. Aí a sandália se espalhou no meio do mundo”, conta.
Dos pés dos homens e mulheres que trilham veredas sertanejas à passarela do São Paulo Fashion Week, a trajetória de Espedito traduz o resultado do trabalho, marcado pelos arabesco de coração em couro, um valor imensurável. O artesão é artista do sertão, tendo em Nova Olinda o seu ponto de acolhimento, e fazendo de todo o Cariri um laboratório de formação e desenvolvimento.
“A precisão me obrigou a puxar pela memória. Quando eu precisei fazer uma peça bem colorida, eu fui na mata, tirei a casca do angico, que é uma árvore própria para trabalhar com couro. Da casca do angico fiz a tinta ficar marrom. Fui no açude, peguei a lama que o gado pisava, e arrastei a lama, enterrando [nela] o couro. Fui na mata e tirei a madeira da catingueira, fiz uma fogueira. Tirei a cinza da fogueira e botei numa lata, furei um butaco e deixei lá pingando. Depois de 15 dias, tinha água, então botei o couro dentro. Comecei a lavar até ficar bem alvinho para fazer as costurinhas. O vermelho eu fiz à base de urucum”, explica Espedito, que hoje em dia já conta com couro aperfeiçoado pelo processo industrial.
De lá para cá, Espedito não parou de criar e empreender. Ele também não perde a conta dos trabalhos que fez e continua fazendo. Das encomendas especiais, sabe uma por uma; os clientes, as datas e os locais em que foram utilizadas. É um defensor de que a valorização do artesanato e defesa da cultura passa pelo ensino nas escolas.
“Eu sempre digo aos jovens todos que não desvaneçam, não. Estudem, estudem, estudem. Eu só não sou uma pessoa mais conhecida porque eu não pude estudar na época, não deu certo, era uma dificuldade da bexiga. Estudo em primeiro lugar. Porque qualquer cultura nasce na escola. A criança na escola aprende a manter a cultura até o mundo se acabar”, considera.
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