Em 17 de agosto de 2024, morre Silvio Santos (Senor Abravanel). Conforme circulou em alguns sites, Silvio tinha raízes na cultura judaica, ligadas à família Abravanel, cuja história remonta a Dom Isaac Abravanel, um preeminente estadista e filósofo do século 15.
Após a expulsão da Península Ibérica, os Abravanel se estabeleceram em Salônica, um dos mais importantes centros da comunidade judaica no Império Otomano, antes de migrarem para o Brasil.
Sua mãe era de origem turca, e seu pai, de origem grega. Silvio era conhecido como o “Homem do Baú” e construiu um dos maiores impérios da comunicação do Brasil, o SBT (Sistema Brasileiro de Televisão). A rica herança judaica e oriental de sua família desempenhou um papel significativo na formação da identidade cultural de Silvio Santos.
Durante todo o dia, fiquei atenta para saber como seria o velório e o enterro de Silvio Santos. Não houve velório público; o enterro seguiu os moldes judaicos, que têm semelhanças com práticas islâmicas em alguns aspectos, como enterrar no mesmo dia, cuidar do corpo dentro dos rituais religiosos e realizar orações específicas. Segundo a lei judaica (Halachá), os enterros não devem ocorrer no Shabat, um dia de descanso e abençoado para os judeus, o que explica por que ele foi enterrado no domingo. O importante é que a vontade dele foi respeitada. Silvio Santos faleceu no sábado – acredita-se que morrer no Shabat é um bom sinal, mas isso certamente deve ter outras leituras, interpretações. Essa proximidade com a sua ancestralidade religiosa me fez lembrar uma música que ele próprio cantava em seu programa de auditório, a qual resgatei da memória:
Que seja mais esse dia
Todo de amor e alegria.
Que seja mais esse dia
Todo de amor, de amor, de amor e alegria.
Hevenu Shalom Aleichem
Hevenu Shalom Aleichem
Hevenu Shalom Aleichem
Hevenu Shalom, Shalom, Shalom Aleichem (2x)
Voltando à minha memória de criança: todas as pessoas que moravam na periferia de São Paulo, como eu, e que celebravam o frango com macarrão como almoço de domingo, sabiam que também era dia de cantar com o grande comunicador, amigo das “colegas de trabalho”. Seu auditório, praticamente 100% feminino, era composto de muitas que viviam dias de princesas, passando pelos cuidados da produção, maquiagem e cabelo, para estarem ao lado de Silvio no auditório e entoarem com ele: Vamos todos cantar, vamos todos brincar, neste show de alegria!
Aos nove anos, fui com a escola onde estudava para o programa Domingo no Parque. Imagine a diversão que era! Não faço ideia de onde ficava o auditório, só sabia que era longe, porque deixava para trás o nosso bairro, Jardim das Oliveiras, ali na região da Cidade Ademar, próximo também de Interlagos. Meu prêmio por acertar uma das perguntas foi um tênis Montreal. Nem lembro se o tênis era bom, só lembro que eu sonhava com a bicicleta, como toda criança da minha idade. Claro que Silvio Santos não conseguiu pronunciar o meu nome, mas isso é algo que a vida me ensinou: muitos não conseguem mesmo. E assistindo aos depoimentos percebi o quanto era comum Silvio Santos errar o nome das pessoas, muitas vezes em tom de brincadeira – ele na verdade era um grande humorista.
Definitivamente, Silvio Santos é “coisa nossa”, ou “cosa nostra”, como diz na música original, principalmente porque ele é, sem dúvida, um ícone da comunicação brasileira. Não houve quem se mantivesse, como ele, por 60 anos fazendo um programa, animando gerações e entoando “Sorria! Sorria! É tempo de sorrir, Sorria! Sorria para a vida que a vida é alegria é tempo de sorrir, sorria!”. A classe trabalhadora, e aqui incluo meus pais e os pais de outros milhares de brasileiros, precisavam no domingo sorrir, cantar, porque deste mundo não se leva nada.
Já adulta, tive contato com Silvio Santos em um elevador – eu levava meu filho mais velho ao mesmo alergista que ele. Naquele momento, dentro do elevador, ele brincou com Bel, fez um comentário sobre a nossa semelhança, e, ao descer, pegou seu carro, que estava em frente ao consultório, sem segurança ou motorista. O dono do Baú parecia gente como a gente, ou “coisa nossa” para alguns.
É indiscutível a genialidade do comunicador Silvio Santos, que enriqueceu com seu programa popular de auditório – com Show de Calouros, com os icônicos Aracy de Almeida e Pedro de Lara, assim como Roletrando, Qual é a música?, Quem quer dinheiro? e outros programas que marcam o domingo das colegas de trabalho e da classe trabalhadora.
Se, por um lado, Silvio Santos era um grande comunicador que me faz lembrar da infância e dos tempos em que celebrávamos a alegria sem saber que éramos privados de muitas coisas, por outro lado, ele também fazia o quadro Semana do Presidente. Eu era pequena e ouvia os comentários do meu pai a respeito, sempre criticando. Mas, aos nove anos, eu não fazia ideia de quem era Figueiredo ou qualquer outro presidente do período militar. Algumas vezes, Silvio Santos tentou ser candidato, mas não deu certo — para nossa alegria.
Li várias críticas a Silvio Santos, não apenas elogios e memórias de muitos artistas e pessoas desconhecidas. Sei que é difícil separar, mas o comunicador Silvio Santos teve seu valor para a televisão brasileira e para o encantamento de pessoas simples, desesperançadas e adoecidas. O influenciador de inclusão Ivan Baron, que subiu a rampa com o presidente Lula, fez uma homenagem a Silvio Santos. Para mim é importante esse posicionamento do Baron, reconhecendo a relevância desse programa.
No entanto, infelizmente, as discussões e as reflexões sobre temas como racismo, misoginia, assédio e LGBTfobia não eram disseminadas durante as décadas de atuação mais ativa de Silvio Santos como comunicador. Com o passar dos anos, e especialmente na última década, a “espontaneidade” de Silvio estava sendo lida como grosseria e preconceito.
Esse é, sem dúvida, um dos desafios a serem enfrentados pelos novos comunicadores de televisão, rádio e outros meios de comunicação na atualidade. Em um contexto em que o respeito e a sensibilidade para com questões de identidade e diversidade são mais valorizados do que nunca, comentários sobre o peso da mulher, o cabelo, a cor da pele ou qualquer outro tema que possa constranger ou ofender uma pessoa não têm mais espaço. A sociedade mudou, felizmente, e determinados padrões de comportamento não são mais aceitos, exigindo assim dos comunicadores falas mais respeitosas, empáticas.
Devemos reconhecer o legado de Silvio Santos na indústria do entretenimento, influenciando uma época em diversos aspectos da comunicação, sem esquecermos que se do “mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar“, quando se morre, mas enquanto se está vivo, os pobres continuam levando nada, apenas o sorrir e o cantar.
Por Francirosy Campos Barbosa, professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP
Jornal da USP Foto Divulgação
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