Segundo OMS, 3 milhões de pessoas morrem por ano devido ao abuso no consumo de álcool e drogas

Relatório mundial recentemente publicado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) indicou que mais de 3 milhões de pessoas morrem por ano devido ao abuso de substâncias como álcool e drogas.

Uma das conclusões foi de que as políticas de tratamento e prevenção no mundo inteiro são ineficientes, há pouquíssimo investimento e profissionais muitas vezes não estão preparados para lidar com esse problema.

A OMS apontou que é uma situação séria e, por causa do estigma e negligência, muitas vezes deixada de lado. Já no Brasil, a situação não é exatamente boa, vide o que se vê nas notícias e nas ruas, mas há reconhecimentos a serem feitos ao enfrentamento público. Segundo Arthur Guerra, professor da Faculdade de Medicina da USP e dono de uma clínica privada de reabilitação, diz que o serviço público não deixa muito a desejar na cidade de São Paulo, afirmando estar “impressionado”.

Psicossocial em Álcool e Drogas (CAPS AD) é um dos maiores programas públicos de combate à dependência química. Até o fim de 2022, eram 421 no Brasil; em São Paulo, são 35 atualmente. É preciso fazer essa diferenciação, porque a opinião de Arthur Guerra não é a mesma para o município e para o nacional. Em São Paulo, enquanto foi coordenador de Saúde Mental da Prefeitura, ele diz que viu “um pessoal ético, sério e responsável” no trabalho municipal, tendo ficado “admirado”. O relato dele indica que o acompanhamento do serviço público é feito com sensibilidade e dedicação e que os investimentos públicos são revertidos em ações práticas.

O especialista diz que a política pública de São Paulo é “correta, porque tem muita discussão, muito debate”. Ele afirma que não necessariamente concorda com todas as diretrizes do Conselho Municipal de Saúde, mas que ele reconhece que, apesar das opiniões destoantes, é positivo que haja espaço para discussão. Já a mesma visão ele não tem do cenário nacional: “No município de São Paulo é uma coisa madura, que traz resultados, é menos tímida do que eu vejo do governo federal. O federal fica solto, eu não vejo a mesma concepção em termos de CAPS, em termos de ‘vamos olhar para isso’”. Segundo ele, em âmbito nacional, a política de combate ao abuso de substâncias patina, estando muito focada em tratar o assunto na perspectiva da segurança – o que para ele não deixa de ser importante, mas não deve ofuscar a pessoa.

Thiago Calil, pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP, concorda com alguns pontos levantados por Arthur Guerra, mas faz ressalvas. Em linhas gerais, eles primeiro discordam da abordagem de reabilitação: Guerra apoia a abstinência absoluta, enquanto Thiago segue o pensamento de redução de danos, o que pode ou não incluir a abstinência total. E se essa discussão é positiva para Guerra, Calil não vê com tão bons olhos.

Ele diz que há um cabo de guerra em como lidar com a situação, e nessa disputa as políticas públicas ficam indo e vindo sem sair muito do lugar. “Temos uma polarização muito grande em relação à questão das drogas, então fica de um lado abstinência como forma única de se pensar o cuidado, e quase no lado oposto vemos a perspectiva da redução de danos.” Essa polêmica, segundo ele, “dificulta o avanço, sedimentar uma forma de cuidar mais eficiente que possa trazer mais qualidade de vida para as pessoas”.

O que ele descreve é um processo que se interrompe constantemente por conta de disputas ideológicas e técnicas. “Tivemos um avanço no final do século 20, começo do século 21, e agora passamos por um retrocesso cultural” na política de combate ao abuso de substâncias. Iniciativas foram descontinuadas por não atenderem mais às diretrizes gerais. “São detalhes, mas que na prática faz muita diferença”, diz ele.

Sociedade causa atrasos
Já um ponto comum que os dois concordam, e até a OMS também apontou como uma das principais causas para o problema, é a estigmatização. No caso de abuso de substâncias, não basta falar de políticas públicas: precisamos lidar com isso de forma coletiva e social. Thiago Calil diz que “muitas vezes os profissionais da ponta têm uma ótima intenção, mas culturalmente ainda existe um estigma forte em relação às pessoas que fazem uso de drogas. Existe uma desvalorização dessas pessoas”. E complementa dizendo que ainda pecamos como sociedade em conseguir se aproximar desse fenômeno das drogas de um jeito mais amplo, atendendo à complexidade desse tema.

Também a ilegalidade e carga moral são grandes impeditivos para que os agentes do serviço público consigam expandir seu trabalho: “Às vezes, a pessoa tem problema com álcool, mas ela também fuma pedra ou maconha, então ela não vai buscar o cuidado em relação ao álcool”. O julgamento social acaba por afastar as pessoas do tratamento, reduzindo-as a uma condição de imoralidade e pecado. Por isso, a solução que tanto Arthur Guerra quanto Thiago Calil propõem é um diálogo franco e aberto, abordando o tema de maneira honesta dentro das escolas, famílias e igrejas também. O Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (Proerd) é um exemplo tanto da solução quanto do problema. De acordo com Calil, é positivo falar disso nas escolas, mas a forma como é feita é muito representativa: policiais fardados, reforçando o estigma de crime e marginalidade.

A OMS apontou que muitos países não têm políticas públicas ou um orçamento definido para essa questão. O Brasil tem ambos e, em um cenário internacional, não está mal. Falta nos envolvermos mais como sociedade, com menos preconceito e aversão ao tema, o que também faz parte da proposta da Organização Mundial: envolver organizações da sociedade civil, associações profissionais e pessoas com experiências vividas e aumentar a conscientização por meio de uma campanha de defesa global coordenada.

Jornal da USP Foto Agencia Brasil