A falta de jornalismo local na maioria dos pequenos municípios fragiliza o debate público e o exercício da cidadania, diz pesquisadores

Uma triste notícia: nada menos do que 78% dos municípios brasileiros sofrem com falta de notícias locais ou com a precariedade delas. São cerca de 2.712 municípios que não têm nenhum veículo de comunicação local. Outros 1.635 municípios possuem um ou dois veículos de comunicação. Essas localidades são chamadas de desertos de notícias e os quase desertos. Os dados são do Atlas da Notícia, produzido pelo Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), e se referem ao ano de 2023. Uma realidade que, até certo ponto, ameaça até a democracia. 

Todos os estados brasileiros têm municípios nessa situação vivendo com pouca ou nenhuma cobertura local da imprensa.

De acordo com o pesquisador Dubes Sônego, os desertos ou quase desertos, muitas vezes, nunca tiveram acesso a jornais impressos, rádios ou outros meios de comunicação devido à falta de uma dinâmica econômica sustentável, já que a criação de um jornal envolve altos custos e uma infraestrutura complexa. “Um jornal é uma estrutura cara. Tem que ter uma rotativa (prensa), comprar papel e o papel tem que chegar lá. Então não é algo tão simples.” 

Segundo o pesquisador, muitos dos jornais impressos com sede em cidades hoje classificadas como desertos foram fechados com o tempo, mas em alguns lugares, versões on-line desses veículos surgiram. De fato, a tecnologia e as mídias digitais trouxeram uma revolução na distribuição de notícias. “Ficou muito mais barato distribuir a notícia. Fazer um vídeo hoje é muito fácil. Criar um blog é fácil e barato, criar uma página de rede social para publicar notícias é rápido e barato.” Por isso, “apesar do número de desertos de notícias ser muito grande hoje no Brasil, ele vem diminuindo”, constata Sônego. O Atlas da Notícia aponta que 271 municípios brasileiros passaram a contar com, ao menos, um veículo de comunicação local e outros 15 voltaram a ser considerados desertos. No geral, houve uma redução de 8,6% nos desertos de notícias no País em 2023.

Mas é preciso ficar alerta para a necessidade de filtrar e coordenar essas informações em comunidades que desenvolvem meios de comunicação pela internet, alerta o professor Almeida. “A gente vive um momento de muita disseminação de fake news, de informações, senão falsas e maliciosas, muitas vezes incompletas ou incorretas.”  Por isso, comunidades locais podem constituir espaços para filtragem das notícias. “Não filtragem no sentido propriamente ideológico, de censura, mas no sentido de veracidade, de precisão das informações que estão circulando ali naquele momento” conclui Almeida.

As redes sociais atuam como ferramentas de comunicação on-line, mas é preciso cuidado, também alerta o professor Belda. “As redes sociais, muitas vezes, fazem um papel importante para divulgar os acontecimentos, os eventos, dar voz às pessoas, às comunidades, divulgar a agenda cultural. Mas pela sua própria natureza, as redes sociais não suprem a ausência dos meios de comunicação locais que são comprometidos com as técnicas e os processos do jornalismo. Elas não favorecem a atividade de apuração que caracteriza a reportagem jornalística.”

Para o professor Belda, as fake news estão inseridas num espectro muito maior de fenômenos de desinformação. “Além dos discursos fraudulentos, falsificados, nós também temos nas redes sociais o chamado discurso do ódio, a informação insultuosa, muitas vezes caluniosa e difamatória que contempla também discursos ideológicos.” É uma situação que se agrava pelo fato de não existirem nos desertos noticiosos veículos de informação que possam fazer um contraponto às fake news, ressalta o professor Belda. “É uma situação preocupante que vem despertando a atenção de autoridades em todo o mundo, seja por vias regulatórias, de educação midiática ou de fortalecimento da atividade jornalística.”

Da economia à cultura
Além das eleições, segundo Sônego, novas regulamentações ou pacotes econômicos que incluam uma indústria presente nessas cidades, por exemplo, podem passar despercebidos pela população, que pode não entender como essas mudanças impactam diretamente em suas vidas. “Se você tem uma mídia só em outra cidade e não o jornalismo local, ela talvez não se interesse em fazer uma matéria sobre aquilo que está acontecendo na vizinha”, afirma. O pesquisador diz, ainda, que cidades com diversidade de veículos de imprensa conseguem cobrir uma gama maior de assuntos com especificidade e detalhes do local. Em São Paulo, ele cita a presença de veículos especializados e iniciativas como a Agência Mural, que preenche a cobertura de regiões periféricas da capital. “Isso permite que as pessoas tenham mais informações, com um pouco mais de acuracidade e embasadas, para tomar suas decisões sobre a vida, avaliar o mundo e poder se posicionar politicamente.” 

Segundo Almeida, a falta de jornalismo local envolve também a questão da memória histórica. “Esse vácuo informacional acaba prejudicando bastante os moradores, não só na percepção da realidade imediata que os cercam, mas também na própria constituição de uma memória, de uma identidade pessoal.”

Atlas da Notícia
O levantamento de dados para o Atlas da Notícia é realizado de forma colaborativa, envolvendo voluntários de todo o País. Sônego conta que, em geral, são procuradas universidades, especialmente faculdades de jornalismo, mas também de outras áreas, para buscar ajuda de voluntários, que se engajam no levantamento de dados. O trabalho é feito, geralmente de forma mais concentrada, no segundo semestre do ano. 

Contatos são feitos com assessorias de imprensa dos municípios para identificar veículos locais desconhecidos, além de estabelecimentos comerciais e moradores para descobrir quais veículos de comunicação locais são lidos, ouvidos ou vistos. Nos quase desertos, Sônego afirma que tanto a checagem de veículos existentes quanto a busca por novos veículos são realizadas. As informações coletadas pelos voluntários são “acrescentadas ao banco de dados, verificadas pelo coordenador de cada região, re-checadas e aprovadas”, antes que sejam de fato incluídas no banco de dados e tornem-se públicas, comenta o jornalista.

 

Jornal da USP