A possibilidade de olhar para a própria história e sistematizar as conquistas políticas e sociais a partir de momentos coletivos, foi considerado um ganho para a comunidade de Ouricuri, em Uauá, na Bahia. Além disso, uma família também se permitiu fazer esse exercício e hoje percebe o quanto é viável a vida no campo a partir da lógica da Convivência com o Semiárido.
Esses resultados são parte de um projeto da Cáritas França que chegou ao sertão da Bahia por meio da ASA e do Instituto Regional da Pequena Agropecuária (Irpaa).
Nos últimos dias 10 a 12, o representante da instituição internacional, Walter Prysthon, esteve visitando os municípios baianos de Uauá e Canudos, juntamente com equipe da ASA e do Irpaa. Na oportunidade, foi possível observar in loco como se deu esta ação de incidência política viabilizada por meio do método Lume.
Segundo Walter, o projeto evidencia que as saídas para as crises ecológicas no mundo passam pela justiça social e ambiental e que diversas experiências em curso na América Latina apontam para a necessidade de haver uma transição ecológica, o que exige uma relação harmônica entre ser o humano e bens comuns como água, terra, sementes, etc.
A ação desenvolvida na Bahia teve como elemento central o modo de vida tradicional predominante nas comunidades Fundo de Pasto. “Eu percebi que o que caracteriza as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto é justamente o cuidado com o bem comum, que é o território coletivo da comunidade, é algo que elas cultivam desde sua experiência ancestral, que servem ao bem estar da família, mas também da comunidade”, observou Walter, que é encarregado de projetos da Cáritas França.
Em Uauá, Walter dialogou com representantes da comunidade de Ouricuri, visitou a experiência comunitária do recaatingamento, conheceu algumas tecnologias de captação e armazenamento de água da chuva adaptadas ao Semiárido, além de visitar a propriedade da família da agricultora Maria de Lurdes Ferreira Matos dos Santos e João Bosco Pedro Mariano, indicada pela comunidade como sujeitos da pesquisa. A Cooperativa Agropecuária Familiar de Canudos, Uauá e Curaçá (Coopercuc) também foi um dos locais visitados no município.
Dona Maria de Lourdes destacou a importância de ter participado da experiência, o que para ela foi uma forma inclusive de ativar as memórias individuais, pois a partir da construção da linha do tempo da família foi estimulada a lembrar de elementos importantes da sua vida. Além disso, a agricultora considera que foi essencial a construção do conhecimento, pois “não adianta ter o que comer, o que beber, se a gente não tiver informação”. Na propriedade da família, a relação com o quintal produtivo, com o sistema de saneamento, a estocagem de sementes e criação de animais chamou atenção dos/das visitantes.
A partir do método Lume, Dona Lurdes e Seu João Bosco puderam enxergar melhor o que isso significa para a autonomia financeira da família, bem como para o modo de vida de forma geral. Além dos momentos coletivos na comunidade, a pesquisa com a família foi realizada em três momentos: escuta e sistematização da história, visita a área e construção de mapas; socialização das informações com a comunidade.
Para Rafael Neves, da ASA, essa parceria com a Cáritas França é importante porque tem como objetivo apoiar a parceria entre organizações que têm ações de processos de transição ecológica justa e proporcionar a troca de experiência entre elas. “Optamos por focar essa troca a partir das comunidades de Fundo de Pasto, que tem uma relação muito rica e específica com esse bem comum que é a terra”, justificou Rafael.
Durante a visita do representante da Cáritas, a família de Dona Lurdes e Seu Bosco, junto com demais moradores/as da comunidade de Ouricuri, puderam mostrar como é essa relação em uma rica conversa embaixo de um umbuzeiro. Chamou atenção de Rafael conhecer também a experiência de recaatingamento e agrocaatinga, que permitem a recuperação de áreas degradadas e produção combinada com preservação da caatinga. “Importante não só para eles, mas para o mundo”, afirmou.
Apesar das experiências positivas vivenciadas pelas famílias e comunidades de Fundo de Pasto, as ameaças ao Bioma Caatinga afetam este modo de vida tradicional. Empreendimentos de grandes empresas como parques de geração de energia e mineração impactam os diversos bens comuns, sendo, portanto, um entrave para a transição ecológica.
No município de Canudos foi possível conhecer mais uma experiência de Fundo de Pasto, a comunidade de Bom Jardim, que hoje vê de perto os impactos dos parques eólicos. Sob o discurso do desenvolvimento sustentável por meio das chamadas energias limpas, estes empreendimentos se instalam no Semiárido, contudo, o modelo adotado deixa marcas irreversíveis para o meio ambiente e a população. “A gente percebeu fortemente o que representa a discussão das novas tecnologias para produção energética. O que se apresenta como uma transição verde, muitas vezes não respeita o direito das comunidades”, pontua Walter Prysthon.
Mas o que anima a Cáritas é perceber que o modelo de organização das comunidades Fundo de Pasto “representa uma oportunidade pra que a sociedade se volte a novas formas de gestão dos bens comuns que não são a da privatização, a da lógica do mercado”, descreve Walter. Outro aspecto que ele destaca é a aposta na juventude, algo que enxergou a partir da observação do trabalho do Irpaa. “O Irpaa me mostrou algo que é muito importante (…) que é a acolhida das juventudes e a proposta de um trabalho que tem em conta a realidade dos jovens e façam deles protagonistas”, relata.
Um dos jovens envolvidos nestas ações é Jair Cardoso, de Ouricuri, que tem participado de atividades junto à Cáritas. Ele esteve compartilhando a experiência de sua comunidade na Bolívia e no final deste mês irá para o Peru representando o Semiárido brasileiro em mais um intercâmbio internacional. Jair integra o Coletivo de Jovens CUC (Canudos, Uauá e Curaçá), uma iniciativa gestada a partir de projetos de formação desenvolvidos pelo Irpaa nestes municípios.
Para Walter, a visita serviu também para fortalecer os laços com a ASA e as entidades que a integram, como é o caso do Irpaa, que tem sede em Juazeiro (BA). “Volto para a França com muitas questões a aprofundar, mas volto convencido que posso fazer isso junto aos companheiros do Semiárido baiano, do Semiárido brasileiro”, finalizou.
Érica Daiane | ASACom
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