A população brasileira é formada por 50% de católicos e 31% de evangélicos. A Constituição de 1891 estabeleceu o Estado brasileiro como uma instituição laica, garantindo a liberdade religiosa, para todos os cidadãos, até os dias de hoje.
Assunto encerrado?
Não.
Basta olhar as notícias no celular, abrir um jornal ou ligar a televisão. Na disputa presidencial brasileira o voto dos evangélicos tem peso significativo. Entre eles, 48% declaram voto em Bolsonaro e 32% apoiam Lula (dados do Datafolha, divulgados em 1/9).
Apesar do Estado brasileiro ser laico, parte significativa da população não separa o espaço privado, de suas convicções religiosas individuais, do espaço público, gerido pelo Estado. Por que é difícil separar uma coisa da outra, o público do privado?
A história do Brasil é farta em diferentes práticas religiosas. As escolas religiosas foram uma marca no passado e no presente, as festas devocionais, um momento de confraternização da população, e as expressões de linguagem “Deus te guarde”, “Vá com Deus”, “deixo nas mãos de Deus” são formas de falar típicas do dia a dia dos brasileiros. Festas juninas são, também, festas políticas e de políticos. A população brasileira espera apoio material de Santo Antônio, de São João, da Virgem Maria, e em níveis mais elevados de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e, por vezes, do Estado.
Para todos, indiscriminadamente, a população pede proteção e justiça.
A esperança é que alguém escute.
É comum ouvir a frase: Eu só quero justiça, diante de um crime.
Justiça praticada por quem?
Pelo Estado.
Onde e como nasceu a ideia de Justiça?
Na tradição do Ocidente, com os gregos, remodelada com o cristianismo, discutida pelos teólogos, como São Tomás de Aquino, desembocando no contrato social, gerido por instituições de Estado.
A cidade das gentes é repleta de desejos de vingança, de amor, de ódio, de generosidade, de ganância, sentimentos próprios da condição humana. Para resolver as contradições dos humanos, a história do Ocidente construiu alternativas com raiz na pólis, no bem comum, nas instituições, na Justiça. O indivíduo isolado ou mesmo organizado em pequenos grupos não dispõe de instrumentos para planejar, gerir e corrigir os rumos da pólis. Os seres humanos sem um contrato e instituições brigarão muito entre si. Entre inúmeros desacertos correm o risco de morrer de fome, sem chegar a nenhum acordo. Cabe ao Estado pôr ordem no caos, gerir as condutas dos indivíduos, organizar a sociedade, impor limites aos crentes ou descrentes da vida política, ou mesmo, de Deus (ou deus).
As igrejas evangélicas existentes no Brasil, com suas diversas denominações, ganharam força a partir da década de 1970. Desenvolveram projetos pregando a valorização da prosperidade individual, em detrimento de políticas estatais.
Por que as igrejas evangélicas ganharam espaço em comunidades de baixa renda, especialmente a partir dos anos 1970 do século passado?
Porque desenvolveram e difundiram a teologia da prosperidade, com forte aceitação no segmento neopentecostal. A proposta ganhou força entre uma população pobre, migrante do campo para as periferias das cidades. Os antigos laços familiares e de solidariedade se romperam com a migração. Abandonados pelo poder público, a população marginalizada viu crescer diversos tipos de associações de ajuda mútua. Algumas escolheram como vínculo a religiosidade e, outras, o crime organizado (milícias) e o comércio de drogas.
Em meio à insegurança cotidiana, as igrejas evangélicas encontraram uma população descrente das instituições políticas e incapaz de superar os desafios contemporâneos. Elas foram a única porta aberta nas comunidades, oferecendo abrigo para as populações de baixa renda.
Os evangélicos souberam substituir a instituição Estado pela instituição Igreja.
Construíram uma nova linguagem fundada na intolerância da igualdade, canal adequado para desaguar a raiva do “vizinho”, inimigo próximo. Souberam ensinar a obediência irrestrita (disciplina), aproveitando dos resquícios de uma sociedade autoritária, e valorizaram as tradições patriarcais, fortalecendo uma cultura tradicional, profundamente machista. Negaram a mudança e a modernidade, demonizaram as questões de gênero. Defenderam uma teologia ancorada na negação do prazer carnal, valorizaram a cura pelo exorcismo e estimularam as ilusões proféticas, materializadas em milagres. Pastores ungidos pelo Senhor e diante do profundo desamparo da população construíram uma nova linguagem, marcada pela fala direta, sem os rodeios retóricos antigos e uso de diminutivos (formas de amenizar estruturas de dominação). Ensinaram a administração eficiente de negócios, desenvolveram práticas voltadas para a liderança e modelos de gestão de negócios. Acrescentaram à lógica religiosa a matemática do empreendimento, o espetáculo nos cultos e a cultura de resultados (prosperidade), transformando o dinheiro em expressão da graça divina.
Sem o amparo do Estado, sem educação de qualidade e sem renda para subsistir, as populações mais pobres precisaram justificar tanta desgraça, para aliviar o justo rancor social. Era necessário produzir um responsável materializável para encarnar todas as desgraças. O Estado é uma entidade abstrata. Não se presta para descarregas de ódio. É mais fácil compreender o mal se ele estiver representado em algo palpável, sólido. Nada melhor do que um diabo, um juiz, uma mulher feiticeira, um comunista, um preto ou uma urna eleitoral para personalizar o mal. Melhor ainda a contraposição binária do diabo encarnado no pobre em oposição ao empreendedor-mascate, cuja fé (e não o SUS) cura qualquer doença, transformando o crente em um rico e feliz fiel pagador de dízimos.
Uma teologia onde Jesus Cristo redimiu a humanidade e a graça produz sinais como a riqueza, a boa saúde ou a vitória política, indicativos da salvação apropriados à conversão de pessoas em situação de dificuldade. Da mesma forma demonizar o mal, materializando-o na pobreza, na doença, em minorias (mulheres, pretos, judeus, ideologias de gênero, entre outros), permite solidez, materialidade, para o bem e o mal. Ingredientes de uma perigosa receita política.
Bem mais difícil é refletir, abstrair, avaliar as próprias atitudes e compreender as políticas de Estado. Meta quase impossível de ser alcançada sem um pouco de educação de qualidade. A solução mais simples sempre é culpar o Outro, delegar o mal para quem é diferente na cor, nas ideias, ou nas tradições.
A certeza frui, é leve e linear. A dúvida dói, pesa, é um emaranhado de possibilidades.
As soluções apresentadas pelos evangélicos dizem respeito à ética do trabalho. Na linguagem atual a palavra é empreendedorismo, tecido com ilusões, apoiado por alguns sucessos financeiros, difundidos nas redes sociais. Não se pode deixar de lado o modelo eficiente de gestão dos negócios, proposto pelos evangélicos. Ele envolve redes de apoio na comunidade e, do ponto de vista dos negócios, sugere até franquias para a sua expansão. As práticas de fato favorecem a prosperidade financeira.
Em suma: Existe, entre alguns evangélicos, justificação religiosa e política para a precarização do sistema de saúde, para o combate à fome e para a ausência de políticas voltadas para o bem-estar dos mais necessitados. Existe liberdade de interpretação do texto bíblico, à moda do leitor. Eu me salvo. Reconheço os sinais da graça, e ponto final.
Lugar de fala: o catolicismo e a questão da graça
Qual a diferença com a tradição dos católicos?
O bem e o mal não estão postos em pessoas diferentes. De um lado o bem e de outro o mal. O bem e o mal vivem dentro de cada um de nós. Optar pelo bem ou pelo mal é do livre-arbítrio do ser humano. Ele é o responsável pela escolha, por meio do uso da razão e do coração. E, para complicar: dinheiro e poder não significam sinais de obtenção da graça.
Dura responsabilidade, e solitária realidade.
Personalizando a reflexão na pessoa do padre Júlio Lancellotti é possível observar o cuidado do pároco com a população de rua, com menores infratores e pacientes com HIV/Aids. Não se trata apenas de diferenças de sensibilidade em relação aos mais necessitados.
O centro da questão é: diante de uma dificuldade para obter um emprego, sarar de uma doença ou acompanhar os desafios escolares, a “culpa” ou responsabilidade (presente nas duas tradições) é de quem? Do pobre, do doente, da mãe ou do abandono do Estado incapaz de prover o indivíduo para que ele disponha de condições adequadas para atuar na pólis (vida política)?
Sucesso, dinheiro e poder são indicativos do caminho da salvação?
Na tradição católica, não.
De acordo com a tradição católica a graça é dom do amor. Ela é gratuita, faz parte da liberdade amorosa de Deus. Ela não é resultado da ação ou de obras ou do trabalho. Uma pessoa pode ter ganho muito dinheiro ou ter obtido muito poder ou, ainda, ter sido disciplinada ao longo da vida sem alcançar a graça. Ela, a graça, não se mistura nem com o poder, nem com o dinheiro nem com o Estado. Portanto, é clara a separação das coisas terrenas das coisas divinas, justificando o papel do Estado laico e responsabilizando os indivíduos pelas suas escolhas (livre-arbítrio).
Para os católicos, embora o demônio esteja presente na religiosidade popular, a resolução teológica, do bem e do mal, se dá por meio do livre-arbítrio. O homem possui capacidade de escolha entre o bem e o mal, a todo o instante. Esta liberdade para escolher faz dele agente responsável pela prática, do bem ou do mal. O mal não está no Outro, em objetos, em exus, orixás, caboclos, feiticeiras, comunismo, mulheres ou opções políticas. O bem ou o mal, o amor ou o ódio, a generosidade ou a mesquinhez são frutos de uma escolha: do livre-arbítrio do ser humano. O mesmo livre-arbítrio que dispomos na pólis, para votar e se responsabilizar pela escolha.
Temos na política duas matrizes religiosas que, grosso modo, justificam mais ou menos Estado, mais ou menos liberdade individual, mais livre-arbítrio e menos demonização do Outro.
Resumo da ópera: as práticas religiosas existentes nas sociedades interferem nas políticas públicas. O Estado, embora laico, enfrenta dificuldades para manter as fronteiras entre o público e o privado. A porosidade das fronteiras pode contribuir para a discutida corrosão da democracia.
Por Janice Theodoro da Silva, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP
Jornal da USP
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