Há quase sete anos, o imponente acervo de Manuel Correia de Andrade (1922-2007) – professor, geógrafo, historiador, advogado e escritor pernambucano – dormia nos arquivos do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP.
Seus 80 mil itens, compostos dos livros de sua biblioteca pessoal, manuscritos, correspondências com intelectuais e documentação institucional de órgãos como a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e a Fundação Joaquim Nabuco, aguardavam o despertador dos recursos financeiros necessários para seu manuseio apropriado.
Agora, no ano do centenário de Manuel Correia de Andrade, esse despertador finalmente tocou e essa vasta coleção começará a ser catalogada e organizada. No final do ano passado, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) aprovou projeto que garante R$ 3,5 milhões para esse trabalho, a ser realizado durante dois anos e meio, tendo a Fundação de Apoio à Universidade de São Paulo (Fusp) como cogestora do projeto, ao lado do BNDES.
O Projeto Manuel Correia de Andrade – como é chamada a iniciativa – é coordenado por Alexandre de Freitas Barbosa, professor de História Econômica e Economia Brasileira do IEB. Guardado pelo instituto desde 2015, o acervo se assenta principalmente nas áreas de história, geografia, economia, ciências sociais e direito e se destaca em temas ligados a desenvolvimento regional, a reforma agrária e à questão ambiental, sobretudo do Nordeste.
“Manuel Correia de Andrade não se restringiu à reflexão sobre o Nordeste, mas não podemos negar que esse era o espaço específico dele, onde teve atuação política, intelectual e científica e cujo legado nos permite dizer que o IEB, além de ter uma Brasiliana, tem também uma Nordestiniana, como estou chamando carinhosamente”, comenta o professor.
Conforme conta Barbosa, a doação do acervo ao instituto foi uma vontade do próprio Andrade, que gostaria de vê-lo ao lado da coleção de Caio Prado Júnior, um de seus mestres e incentivadores. “Isso é um gesto singelo que demonstra parceria intelectual. O acervo de Caio Prado Júnior está aqui e ele foi um dos mestres de Manuel Correia de Andrade”, destaca o professor. “Isso mostra que a atividade intelectual é séria, comprometida e científica e, ao mesmo tempo, feita de lastros entre pessoas que buscam aprofundar o saber e transformar a sociedade, algo que unia os dois.” Andrade teria ficado ainda mais feliz por sua coleção aportar no IEB, assinala Barbosa, se soubesse que alguns anos depois, em 2019, o acervo de outro mestre, Celso Furtado, também chegaria ao instituto.
A TERRA, O HOMEM E O NORDESTE: Manuel Correia de Andrade nasceu no Engenho Jundiá, em Vicência, cidade situada entre a zona da mata e o agreste de Pernambuco. A vivência no ambiente do latifúndio, ao lado dos pais e dos oito irmãos, se mostraria fundamental em suas reflexões sobre a questão agrária.
Em 1933 muda-se para Recife, onde faz os estudos secundários e em seguida ingressa na Faculdade de Direito, em 1941. Em pleno Estado Novo varguista, dedica-se ao movimento estudantil, toma parte em protestos contra o governo e se filia, por um breve período, ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Acaba preso em 1944, mas é anistiado no ano seguinte.
Paralelamente ao estudo do direito, desde 1943 integra a primeira turma do curso de Geografia e História do que viria a ser a atual Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). Ainda estudante, dá aulas em escolas secundárias e, formado, advoga para alguns sindicatos em questões trabalhistas. Em 1952, torna-se professor da Universidade do Recife, futura Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), na qual atuaria até 1984.
Por sua participação no governo de Miguel Arraes, vinculada à direção do Grupo Executivo de Produção de Alimentos (Gepa), por sua ligação com o Movimento de Cultura Popular (MCP), orientado para a educação de adultos, e também em virtude da publicação de A Terra e o Homem no Nordeste, acaba detido durante alguns dias após o golpe militar de 1964. Mesmo liberado para retomar suas atividades profissionais, opta por passar um tempo na França, onde estuda na Sorbonne.
De volta ao Brasil, nos anos 1970 se torna pesquisador da Sudene. Nos anos 1980, assume a coordenação-geral de Estudos da História Brasileira da Fundação Joaquim Nabuco. Volta ainda para a UFPE, como titular da Cátedra Gilberto Freyre do Departamento de Ciências Sociais do Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
Quando morreu, aos 84 anos, acumulava um punhado de títulos, como o de Professor Emérito da UFPE e Doutor Honoris Causa por quatro universidades: a Federal de Sergipe (UFS), a Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), a Federal de Alagoas (UFAL) e a Unicap. Recebeu a medalha da Ordem Nacional do Mérito Científico, do Ministério de Ciência e Tecnologia, em 2003, e a medalha Capes 50 anos, do Ministério de Educação, em 2001. Também foi agraciado com o Prêmio Milton Santos no Encontro de Geógrafos da América Latina, ocorrido na USP em 2005, e o Prêmio Florestan Fernandes, da Sociedade Brasileira de Sociologia, em 2001. Era também membro da Academia Pernambucana de Letras.
“Agora nós temos a certeza de que seu acervo estará bem conservado e em condições de pesquisa e acesso ao público depois desses dois anos e meio”, afirma Barbosa. “É muito importante ter registrados para os futuros pesquisadores os materiais de trabalho de intelectuais como Andrade. Os documentos falam, revelam elementos que não estão na obra do autor e podem revelar novas camadas dos métodos de seus sistemas de pensamento”, finaliza Barbosa.
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