Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, que mensura o comportamento dos leitores em âmbito nacional, as mulheres leem mais do que os homens. A última edição do estudo, realizada em 2015, revelou que 59% das mulheres do país são leitoras, enquanto no gênero masculino a taxa de leitores é de 52%.
Entretanto, a maior adesão das mulheres aos livros ainda não se reflete na representatividade do mercado editorial, que apesar da evolução nos últimos anos, está longe da equidade de gênero.
A pesquisadora Regina Dalcastagnè mapeou as publicações de romances em três momentos do país (1965-1979, 1990-2004, 2005-2014), nas editoras Rocco, Recorde Companhia das Letras. O estudo comprovou que nessas grandes editoras se publicam mais autores do que autoras. No primeiro período (1965-1979), os números indicavam 82,6% de escritores e 17,4% de escritoras publicadas. No último recorte analisado, a diferença foi de 70,6% para 29,4% (2005-2014), um crescimento que aponta para um futuro mais promissor para as autoras, mas evidencia o longo caminho que ainda precisa ser percorrido.
“A desigualdade se repete quando analisados os gêneros das personagens nas narrativas: do primeiro recorte temporal ao último, a participação de personagens mulheres nas estórias passou de 40,7% para 41,3%, ou seja, em quase cinquenta anos a representatividade de personagens do gênero feminino aumentou apenas 0,6% nos livros lançados por essas três editoras”, aponta Dalcastagnè em seu estudo.
MACHISMO: “A disparidade já começa no processo de criação. Enquanto a mulher tem tripla jornada e o espaço de criação e de execução do seu livro é muito menor, o homem inclusive recebe o apoio da sua companheira”, argumenta a escritora pernambucana Cida Pedrosa, vencedora do Prêmio Jabuti 2020 com o livro “Solo para Vialejo”, pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe) nas categorias Livro do Ano e Poesia.
“Não vou esquecer nunca. Eu estava em um festival e ouvi um homem dizendo assim: ‘Quero agradecer à minha companheira essa premiação, porque eu chegava em casa e podia me dedicar ao meu livro e ela ficava com os filhos’. Isso não acontece conosco, nós não temos o mesmo apoio”, questiona Cida.
Jaqueline Fraga, jornalista da Folha de Pernambuco e escritora finalista do prêmio Jabuti com o livro “Negra Sou: a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho", reforça a luta histórica das mulheres por igualdade. “Nos mais variados campos profissionais, a presença feminina é algo que foi se conquistando com o passar do tempo, com muitas lutas e reivindicações. E no campo intelectual isso não é diferente, aliás, é um espaço em que as disparidades ainda são gritantes. É como se o saber fosse apenas masculino, uma cultura pautada por ideias patriarcais, que parece ainda estar enraizada em nossa sociedade”, avalia.
“Sabemos que mulheres escreveram sob pseudônimos masculinos para terem a oportunidade de serem publicadas e verem seu texto e sua contribuição literária e intelectual respeitados. No Brasil, especificamente, a história visibilizou os grandes autores mas legou às autoras, muitas vezes, um espaço de esquecimento. É essa ruptura, essa mudança de cenário, com mais visibilidade e oportunidades para escritoras, que precisa nortear o mercado editorial brasileiro. Não é natural permanecer com o pensamento de que apenas homens, e em especial homens brancos, produzem conhecimento e literatura. É preciso dar espaço e oportunizar a produção de mulheres no campo do saber”, cobra Jaqueline.
No século XIX, para que uma mulher conseguisse publicar um escrito, precisava ou recorrer ao marido para assinar a publicação ou usava pseudônimo masculino. “Toda essa desigualdade histórica faz com que esse mundo machista – o machismo é extremamente estrutural e não pessoal – que está nas instituições, nas pessoas e em toda a sociedade - leva a crer que o homem tem um papel intelectual melhor. Nossa luta por espaço, a luta feminista tem ajudado muito a diminuir isso”, completa Cida Pedrosa.
“A grande escritora Conceição Evaristo já nos ensinou que ‘para a mulher negra, escrever é um ato político’. E muitas são as autoras negras que se autopublicam por saberem da importância de produzir conhecimento e por, muitas vezes, não estarem sob a atenção das grandes editoras. O que nós precisamos fazer é entender que o Brasil é um país plural, em que mais da metade da população é composta por mulheres e por pessoas negras, e procurar meios de refletir essa pluralidade no campo literário, tão essencial para a formação de um povo. É preciso que as editoras assumam o compromisso de produzir e publicar autoras, de transformar seus catálogos e acervos em algo que reflita a nossa diversidade”, destaca Jaqueline Fraga.
“É preciso também que haja políticas públicas de incentivo à cultura e à produção literária criada por mulheres, em especial por mulheres negras. Equidade e representatividade devem ser as palavras norteadoras. E é preciso também incentivar a leitura, o consumo, desse material. Há movimentos muitos interessantes evidenciados em hashtags nas redes sociais como ‘Leia Mulheres’ e ‘Leia Mulheres Negras’, mas, mais do que um post, essa valorização precisa ser real. É preciso que as pessoas leiam essas autoras, adquiram suas obras, compreendam o que é debatido, divulguem e cobrem mais espaço e viabilidade nas editoras, livrarias, editais governamentais, para que essa produção que é tão potente, mas ainda tão difícil de ser mantida, não deixe de existir por falta de apoio”, sugere Fraga.
Cida Pedrosa aponta caminhos para garantir mais espaços para mulheres na literatura. “A gente tem que fazer recorte de gênero o tempo inteiro para mudar essa situação. A gente tem que exigir mulheres nas curadorias dos eventos o tempo todo. Ao poder público, exigir que se compre livros para as escolas de mulheres e de homens equanimemente para garantir a paridade de gênero”, aponta.
Folha Pernambuco
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