É difícil encontrar na música brasileira um personagem tão transformador, tão revolucionário, tão original como João Gilberto. Um dos maiores influenciadores, inspiradores e criadores do século XX e além.
A celebrada geração de Gil, Caetano, Edu, Chico não existiria sem ele, nem seus filhos e netos musicais. Miles Davis e Bob Dylan eram seus grandes fãs. Eric Clapton ainda é. Mas não só músicos, cineastas, escritores e dramaturgos se influenciaram por seu estilo cool e minimalista.
Um artista tão especial naturalmente só poderia ser um personagem complexo, muito complexo. E misterioso. Gostava da vida reclusa, dedicado à sua arte, como um mestre zen que passa os dias repetindo músicas como mantras. Seu traço fundamental é a delicadeza e a doçura de melodias, palavras e gestos.
Com seu violão e sua voz integrados como um só instrumento, a bossa nova ganhou o mundo. Um raro orgulho nacional nos atuais tempos de vergonhas.
Ele é o tema da esplêndida biografia “Amoroso”, escrita por seu amigo da vida inteira Zuza Homem de Mello, um dos melhores críticos musicais do Brasil e um rigoroso pesquisador que escreve em um estilo fluente e cheio de humor.
Ruy Castro já havia mergulhado no mistério de João Gilberto no clássico “Chega de saudade”, uma biografia da bossa nova que tem nele o seu grande protagonista, lançada em 1990. E Zuza agora completa o serviço, acompanhando a trajetória de João até a sua morte.
A vantagem de Zuza é que, além de baixista de jazz formado nos EUA, ele também era engenheiro de som competente, o que lhe deu condições para aprofundar a análise de João como um fenômeno musical. Tudo em linguagem simples, sem tecnicalidades.
Mas o que interessa é a história de como esse baiano saiu de Juazeiro para o mundo, mudando o rumo da música brasileira e fazendo a bossa nova se tornar uma influência nobre no melhor jazz americano. Ao contrário dos haters, que divulgavam a fake que a bossa nova era uma cópia subdesenvolvida do jazz...
João já mereceu incontáveis obras, ensaios, textos e teses, e até um livro de um alemão que o procura pelo Rio de Janeiro, fala com os seus amigos, mas nunca o acha. A biografia de Zuza o encontra e o revela ao leitor através de inúmeras conversas com ele, entrevistas com muitos que conviveram e trabalharam com ele. E muita pesquisa de jornais, rádios e TVs.
A história de João, além de um personagem fascinante e sedutor, dono de uma musicalidade extrema e de uma inteligência rara, é a história de um Brasil que deu certo contra todas as expectativas, encantando plateias nos melhores palcos do mundo.
João se impôs pela qualidade absoluta, gerada por seu implacável perfeccionismo e sua intransigência a qualquer concessão, e uma percepção aguda de seu papel na música brasileira. Tão rigoroso que, ao longo de toda sua carreira, só lançou doze álbuns. Todos impecáveis.
Lendo o livro e acompanhado no streaming todas as gravações de João, é fácil entender por que ele é um gênio amoroso.
O Globo
1 comentário
01 de Jan / 2022 às 08h35
JG revolucionou a música brasileira dando-lhe contornos de modernidade, formatando um ritmo até então não ousado e nem experimentado. Foi um momento mágico. O elo que faltava para aglutinar em torno de si vários outros artistas que também praticavam música cool porém lhes faltavam algo mais que desse alma aos seus trabalhos. Ai chega João com uma batida de violão revolucionária que muitos músicos da época (1956...)simplesmente se rendem a genialidade daquele baiano. Essa batida ele inaugurou um novo ritmo e a partir de então o mundo musical nunca mais foi o mesmo. Salve João! !!