Com exclusividade Isto É acusa "a vacina suspeita da família Bolsonaro"

A CPI já desvendou um padrão para os esquemas suspeitos de compras de vacina no Ministério da Saúde: companhias desqualificadas, interesses escusos e empresários duvidosos, muitas vezes ex-militares, operavam negociações bilionárias longe do controle público e alheias às necessidades urgentes do País.

O que não se sabia é que a própria família Bolsonaro também atuava nesse submundo. Agora, uma troca de e-mails à qual ISTOÉ teve acesso com exclusividade aponta fortes indícios de que o senador Flávio Bolsonaro participou de uma negociação paralela para a compra de uma vacina americana, a Vaxxinity, ainda em fase de testes e sem aprovação de nenhuma autoridade sanitária do planeta, durante uma viagem que o parlamentar fez aos EUA, em junho deste ano.

O que ISTOÉ revela nesta reportagem são as primeiras digitais do filho mais velho do presidente em mais um esquema de malfeitos do governo Bolsonaro no processo de aquisição de imunizantes contra a Covid. O caso chama a atenção por vários aspectos nebulosos, mas o que mais salta aos olhos são as inúmeras semelhanças de irregularidades que este caso guarda em relação aos outros escândalos que já estão sendo investigados pela CPI no Senado.

O envolvimento do 01 nas negociações da vacina americana começa no dia 9 de junho de 2021, às 15h37, quando o advogado e dono de uma pousada de Itacaré (BA), Stelvio Bruni Rosi, envia um e-mail ao gabinete de Flávio Bolsonaro no qual solicita uma reunião entre o parlamentar e representantes do laboratório Vaxxinity, sediado em Dallas (EUA). É o que diz a mensagem, enviada com o título “Flávio Bolsonaro — Vacina Covid-19 — Reunião USA com Empresa Laboratório Americano” e prioridade indicada como “alta”. Rosi enviou o texto pelo endereço “[email protected]”. Ricardo Horácio é um advogado do Rio de Janeiro e dono de um escritório com esse mesmo nome na capital fluminense.

“Senador Flávio Bolsonaro, estivemos juntos na festa em Washington onde foi conversado sobre a vacina da empresa/laboratório/fabricante americana Vaxxinity (antiga Covaxx and United Neuroscience do Grupo UBI — United Biomedical Inc). Solicitamos reunião entre o senhor e a Vaxxinity nos EUA ainda hoje ou amanhã (ou enquanto estiver nos USA). Oportunidade para o governo obter preferência para solicitar a reserva de lote de vacinas estabelecendo negociação prioritária com a Vaxxinity”, diz o e-mail enviado ao filho do presidente. No dia em que Rosi mandou o e-mail, Flávio cumpria agenda com o ministro das Comunicações, Fabio Faria, nos EUA. Os dois visitaram Washington e Nova York para conhecer redes privativas de 5G entre os dias 7 e 10 de junho de 2021.

O encaminhamento do caso por Flávio foi praticamente imediato. No dia seguinte, às 11h30, o gabinete do 01 encaminhou a mensagem de Stelvio ao secretário-executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, que havia assumido o cargo em março, no lugar do coronel Élcio Franco, um dos alvos investigados na CPI. Na mensagem, enviada por Branca de Neves José Luiz, funcionária de Flávio, o senador pede que Cruz analise o pedido para “eventual interesse” na aquisição da vacina. “Prezado senhor, por ordem do senador Flávio Bolsonaro, retransmito a V.Sa. a mensagem a seguir, tendo em vista eventual interesse desse ministério em realizar contato e obter informações”, diz a correspondência. A autenticidade do conteúdo desses e-mails foi confirmada pelas partes envolvidas.

Em conversa com a ISTOÉ, Stelvio se disse arrependido por ter pedido a intervenção de Flávio na operação junto ao Ministério da Saúde, após ser flagrado pela reportagem, que descobriu detalhes da negociação. “Não era o caso também de eu ter tentado acessar um senador que não tem muito a ver, né? Tinha que ser por outro caminho”, afirmou. O autor do e-mail ao filho do presidente relatou ainda que não estava nos EUA naquele dia e disse que se “expressou mal” ao redigir o texto daquela forma.

“Eu mesmo não saio do Brasil desde 2002. Na pandemia, nem de Itacaré eu saí, que é onde moro hoje. Esses caras recebem muitos e-mails. E conversam com muitas pessoas toda hora. Acho que não me expressei muito bem no e-mail. Tentei criar um e-mail para chamar um pouco a atenção”, disse Rosi, tentando apagar as digitais do senador da transação. O empresário também disse ter feito a solicitação ao senador a pedido de um conhecido que, segundo ele, trabalha no setor de vendas da vacina americana.

“Eu tentei fazer a apresentação de uma empresa para um político, que é filho do presidente do Brasil e que eu tinha conhecimento de que estava nos EUA”, relatou o suposto representante da Vaxxinity no Brasil. Segundo o site do próprio laboratório, o imunizante produzido pela empresa é experimental e ainda não foi aprovado em nenhum país do mundo, muito menos pela FDA, a agência americana de medicamentos. No Brasil, a Vaxxinity chegou a pedir autorização à Anvisa para a realização de estudos clínicos da vacina, mas não concluiu essa etapa do processo.

Em nota, o senador negou ter se encontrado com representantes da Vaxxinity na viagem que fez aos EUA em junho, bem como ter feito qualquer intermediação entre a fabricante e o Ministério da Saúde.

A reportagem procurou o laboratório americano para saber se havia iniciado tratativas com o governo brasileiro e se tinha alguma representação no País. A Vaxxinity foi categórica: comunicou nunca ter entrado em contato com o Ministério da Saúde e que ninguém da empresa mantém contatos com Stelvio Bruni Rosi. A empresa informou ainda que seu único representante no País chama-se Elcemar Almeida, cujo perfil nas redes sociais afirma ser o “presidente da Covaxx” (nome antigo da Vaxxinity). “Nenhuma pessoa associada à Vaxxinity jamais esteve em contato com Stelvio Bruni Rosi, nem com o senador Flávio Bolsonaro. Portanto, não temos conhecimento das informações contidas no e-mail citado, nem dessas supostas reuniões”, diz a nota.

Além de advogado e empresário do ramo do turismo, Rosi também tem outros empreendimentos. Segundo ISTOÉ apurou, ele atua ainda como diretor operacional da Malugue Comércio Ltda, empresa do Rio de Janeiro que diz ser especializada na distribuição de equipamentos hospitalares. Criada em 2014, a Malugue opera no bairro da Saúde, no centro da cidade. Na fachada, não há qualquer placa ou sinalização que indique que a companhia realmente funciona naquele endereço. Também desperta suspeitas a quantidade de atividades secundárias informadas pela empresa à Receita Federal: vai desde o comércio de móveis, bolsas, malas, artigos de viagem, até peças para carros e caminhões novos e usados.

CORONEL GUEIROS: “Fechamos contrato com um dos maiores distribuidores de vacinas do mundo. Hoje, seguimos rigorosamente os critérios de condutas pré-definidos por ministérios de saúde dos países fabricantes e dos países compradores e está totalmente amparada para orientar e promover o processo de aquisição de diversas vacinas para combater a Covid-19”, diz a empresa de Stelvio na internet. As informações não batem com o que ele contou à reportagem. “Quando essa coisa de vacina começou a abrir a possibilidade para a venda aos estados, prefeituras e iniciativa privada, a gente tentou fazer uma movimentação nesse sentido”, disse Stelvio.

“Só havia a AstraZeneca, que fazia contrato com governo , a Pfizer e a Coronavac. Na realidade, não tinha outro produto para se trabalhar.” Minutos após essa entrevista, o site da Malugue foi misteriosamente retirado do ar. Stelvio, porém, não é o único diretor da Malugue. Além dele, figuram no corpo diretivo da empresa o já citado advogado Ricardo Horácio e o coronel
da reserva do Exército Gilberto Gueiros.

Gueiros é uma pessoa conhecida da política fluminense. Foi presidente da Loterj na gestão do governador Wilson Witzel no Rio de Janeiro, ex-aliado de Bolsonaro que foi afastado do cargo por desvios na Saúde. Sob a gestão do coronel, a Loterj doou 450 ambulâncias a hospitais do Rio. A CPI da Covid abriu recentemente uma investigação para apurar denúncias de corrupção em contratos envolvendo hospitais fluminenses. Um dos nomes sob suspeita nessa apuração é exatamente o do senador Flávio, segundo confirmam fontes da CPI no Senado.

Três pessoas ouvidas por ISTOÉ, entre as quais um advogado que já trabalhou para a família Bolsonaro no Rio, informaram que Gueiros é um velho conhecido do clã. O militar foi colega de Jair Bolsonaro na academia militar, quando ambos tornaram-se paraquedistas. O coronel Gueiros, inclusive, é alvo de um processo no Superior Tribunal Militar (STM) em que é réu por crimes de fraude em licitação e improbidade administrativa. A ação penal, que contou com investigações da Polícia Federal, apura suspeita de fraudes em licitações do Exército no ano de 2008.

O militar só chegou à presidência da Loterj graças à influência de Flávio. O senador pediu que um colega o indicasse para integrar a gestão Witzel. Quem fez a solicitação foi o líder do Avante na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado Marcos Abrahão. Segundo parlamentares, Flávio e Abrahão são aliados. O nome de Abrahão aparece no mesmo relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que expôs o nome do 01 no conhecido esquema de rachadinhas em seu gabinete na Alerj.

No caso do esquema montado por Flávio, as investigações indicam que o senador recebeu em torno de R$ 6 milhões dos salários dos servidores nomeados em seu gabinete. Abrahão chegou a ser preso no âmbito da Operação Furna da Onça, deflagrada pela Polícia Federal em 2018, que revelou o esquema das rachadinhas. Na casa do deputado estadual, a polícia encontrou R$ 53 mil em dinheiro vivo.

Uma das fontes a confirmar a relação entre a família Bolsonaro e o grupo Malugue é alguém que já foi próximo ao clã. Em uma conversa de cerca de 3 horas, no subsolo de um restaurante de São Paulo, esse antigo aliado do ex-capitão deu detalhes sobre esses vínculos e, em mais de um momento, fez alertas para o alto risco que envolve o que chamou de “organização criminosa”. “Tome cuidado. É uma organização de alta periculosidade”, afirmou, sob a condição de anonimato, por medo de represálias.

Em nota, o Ministério da Saúde confirmou que iniciou tratativas com a Vaxxinity, mas informou ter decidido não comprar o imunizante por considerar que o Brasil já possuía vacinas suficientes. A pasta se recusou a comentar a participação do senador Flávio na operação. ISTOÉ, no entanto, teve acesso à íntegra do processo sobre o imunizante da Vaxxinity que tramita no ministério, com acesso restrito a apenas alguns servidores. O documento é revelador e deixa a história ainda mais misteriosa. Mostra não só que Rosi procurou o ministério antes de enviar a mensagem a Flávio, como também que a proposta teve alguns encaminhamentos de forma célere após a intervenção do senador.

O primeiro e-mail enviado pelo diretor da Malugue ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e que foi anexado ao processo da compra da Vaxxinity, tem data de 31 de maio. Seu teor sugere, porém, que as conversas entre eles já existiam há mais tempo. “De acordo com as nossas conversas, segue as informações solicitadas para o agendamento da Audiência/Reunião Online (Videoconferência) entre o Ministro da Saúde e a empresa “Vaxxinity, Inc.” — www.vaxxinity.com (Laboratório / Fabricante Americano da Vacina do Covid-19/Antiga Covaxx and United Neuroscience do Grupo UBI — United Biomedical Inc.)”, diz o texto assinado por Rosi.

Uma outra informação contida no documento desperta suspeitas de que as negociações envolviam outros países. No cabeçalho do processo, indicado como “interessado” no assunto, aparece o nome do embaixador da Colômbia no Brasil, Dario Montoya, que é próximo ao presidente colombiano Iván Duque Márquez, um dos aliados de Bolsonaro. Em visita recente ao Brasil, a vice-presidente desse país, Marta Lúcia Ramírez, disse que espera articular uma forma de trabalhar em conjunto com o governo Bolsonaro para produzir vacinas contra a Covid em seu território.

“A Colômbia se concentrou em conseguir todas as vacinas aprovadas. Mas temos laboratórios de altíssimo nível, e nosso ministro da Saúde busca que a Colômbia possa, por exemplo, colaborar com o processo de embalagem das vacinas”, disse. O caso, no entanto, já despertou a atenção da CPI do Senado e um dos integrantes do G-7, grupo que comanda a comissão, disse à ISTOÉ que o assunto deverá entrar na pauta das investigações.

Fonte: Isto È