“Estou cansada”. Quase um ano e meio depois do início da pandemia, não espanta que esse seja o sentimento da enfermeira Sandra Valesca Vasconcelos Fava. A rotina de trabalho na UTI Neonatal do Hospital Infantil Albert Sabin em Fortaleza, no Ceará, se torna ainda mais desafiadora diante de um cenário prolongado de mortes e incertezas.
“Assusta, porque não vejo previsão de acabar. Além da demanda de trabalho ser grande, ainda temos uma sobrecarga psicológica e emocional por ver pessoas sofrendo, morrendo. Nós, da saúde, estamos acostumados a lidar com dor e sofrimento, mas a pandemia nos trouxe isso em um quantitativo muito maior”, conta a profissional, que atua na unidade desde 2005. “Todo dia é isso, a gente pede forças, enxuga as lágrimas e volta para o campo de batalha.”
Foi nessa trincheira que a enfermeira testemunhou uma nova e dramática fase da pandemia. Traduzido, no seu caso, com o acometimento dos recém-nascidos e a consequente mudança de protocolos na UTI.
Foi nessa trincheira que a enfermeira testemunhou uma nova e dramática fase da pandemia. Traduzido, no seu caso, com o acometimento dos recém-nascidos e a consequente mudança de protocolos na UTI. “Tivemos um aumento de bebês infectados. Com isso, todo novo paciente é tratado como um caso suspeito. Essa criança vai direto para o isolamento, até que tenhamos o resultado negativo do teste do RT-PCR”, explica.
“Quando temos algum resultado positivo, imediatamente os demais leitos vagos da UTI são bloqueados. Mudamos completamente a nossa rotina. É algo bastante estressante”, completa.
Ao sair do hospital, o cansaço se junta ao medo e à culpa de transmitir o vírus para os familiares. Mesmo com todos os cuidados, foi o que aconteceu. Além de Sandra, suas filhas de 18, 21 e 24 anos tiveram Covid-19, com quadros leves. “A sensação é de que não estamos protegendo nossas famílias nesse sentido. Eu estou vacinada, acredito na imunização, mas meus familiares ainda não”, desabafa.
A enfermeira Taciana Holtz também tenta equilibrar as rotinas hospitalares como enfermeira, com o papel de mãe de duas filhas, de 25 e 14 anos. Nem sempre é possível evitar o sentimento de omissão. “É bastante difícil, acabo passando mais horas no hospital, e o que pega muito é a questão da educação, preciso ajudar minha filha mais nova com os estudos online, então fica tudo mais puxado”.
Morando da cidade de Porto Velho, em Rondônia, ela se divide entre os atendimentos na UTI do Hospital de Base Dr. Ary Pinheiro, em um plantão de 24 horas na semana – além de uma complementação uma vez ao mês – e na equipe de resgate no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), em ambulâncias UTIs. Não faltam histórias de dor.
“No Samu, fazemos muito transporte de pacientes de unidades de pronto atendimento para hospitais com UTI. Teve dias de atendermos 20 ocorrências dessas em 24 horas”, relata. “Já no hospital, o momento mais triste para toda a equipe foi quando tivemos, do total de 13 leitos de UTI, oito pacientes gestantes. Como somos uma unidade referência em obstetrícia, atendemos muitas pacientes obstétricas, puérperas. Chegamos a perder muitas pacientes e os bebês e isso me abalou muito psicologicamente”, conta.
O relato da enfermeira confirma outra face da pandemia, que vem acometendo mulheres grávidas e puérperas de maneira mais agressiva. A média semanal de mortes entre o grupo dobrou este ano. Dados do Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19 mostram que, em 2020, uma média de 10,5 gestantes morreram por Covid, por semana; em 2021, a média de óbitos por semana chegou, até 10 de abril, a 25,8 no grupo.
Para além da profissão, e das duras rotinas enfrentadas durante a pandemia, Sandra e Taciana têm em comum o apoio psicológico, considerado indispensável para ambas. As profissionais têm acesso a um programa de saúde mental oferecido pelo Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), além de acompanhamentos extras. “Senão a gente não aguenta. Preciso cuidar de mim para conseguir cuidar dos meus pacientes”, garante Sandra. “É preciso equilibrar os nossos abalos emocionais”, completa Taciana.
As histórias de Sandra e Taciana certamente encontram ecos País afora, sobretudo porque a área da enfermagem – entre enfermeiros, técnicos e auxiliares – é majoritariamente feminina. Uma pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a pedido do Cofen, em 2015, já mostrava que a presença das mulheres era de 85,1%. Estimativas mais recentes do Conselho apontam um contingente de quase 2,5 milhões de profissionais da área pelo país.
São profissionais que, em sua maioria, acumulam funções e não são devidamente reconhecidas pelo fato de serem mulheres, é o que explica a presidenta do Cofen, Betânia Santos. “Essas mulheres, muitas vezes, são arrimos de família, criam seus filhos sozinhas, acumulam funções domésticas, isso quando não cuidam de outros parentes, idosos enfermos. São profissionais que cumprem extensas rotinas de plantões para terem um salário que, muitas vezes, garante apenas a sobrevivência delas e de seus familiares”, explica, enunciando uma das principais lutas da categoria, a de melhorias salariais.
“A gente ainda observa uma defasagem salarial na categoria, também marcada pela questão de gênero. Reconhecê-las e garantirmos um salário digno é bom não só a elas, como a toda a população. E não que elas não trabalhem de maneira ética por ganharem menos, não é isso, mas teremos profissionais mais satisfeitas, descansadas, menos preocupadas e, portanto, aptas a oferecerem a melhor qualidade na assistência”, reconhece.
As profissionais veem a desigualdade acontecer na prática. “Ainda vivemos em um país onde a hegemonia médica é muito grande, onde os valores pagos por um plantão para os médicos é infinitamente maior do que os pagos para as demais categorias de nível superior, como enfermeiros e fisioterapeutas. Deveria haver uma equiparação salarial mais justa que, na verdade, não existe”, aponta Sandra. “Há uma questão de invisibilidade até para os gestores, a última equipe a ser lembrada é a da enfermagem”, atesta Taciana.
A categoria não tem um piso salarial nacional estabelecido. “Dessa forma, os estados e municípios instituem o valor que querem, há profissionais que chegam a ganhar menos de um salário mínimo”, critica a presidenta do Cofen. Betânia ainda expõe questões sobre a carga horária da categoria que, muitas vezes, chega a mais de 40 horas semanais. “Lutamos por uma carga horária de até 30 horas semanais”, garante Betânia.
A pesquisa sobre o perfil da categoria, de 2015, demonstrou que um elevado percentual dos profissionais da enfermagem (17,6%) declararam ter renda total mensal de até R$ 1.000,00, ‘ou seja, submetidos a situação de subsalários’, apontava o estudo. A situação foi encontrada no setor público (14,4%), no privado (22,1%) e no setor filantrópico (23,7%).
Ainda de acordo com o estudo, cerca de 64% da equipe tem renda total de até 3 mil reais. A situação é ainda pior para os auxiliares e técnicos de enfermagem, em maioria de nível médio: a maioria absoluta destes trabalhadores tem renda mensal somando todas as suas atividades de até R$ 2.000,00.
O estudo ainda identificou uma variedade de jornadas de trabalho, desde subjornadas, na qual os profissionais trabalham menos de 20 horas (3,3%); de 31 a 40 horas (34,7%); até jornadas extenuantes que excedem a 40 horas, somando 38,6% do total.
Batalha política: O Cofen tem pressionado para levar à votação o projeto de Lei 2564/2020, do senador Fabiano Contarato (Rede-ES) que cria um piso salarial mensal de R$ 7.315 para enfermeiros, com base na jornada de trabalho de 30 horas semanais. Ainda de acordo com a proposta, os técnicos de enfermagem devem receber pelo menos 70% desse valor e, os auxiliares de enfermagem e parteiras, 50%. Se aprovados, os pisos salariais deverão ser aplicados em todo o território nacional.
O projeto, que já obteve declaração favorável da relatora, a senadora Zenaide Maia (Pros-RN), continua na agenda de pautas da Casa, sem data definida para votação. Como última ação de mobilização, o conselho protocolou um ofício endereçado ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), exigindo celeridade à votação.
Nada mais justo para profissionais que reconhecem a essencialidade de suas atividades. “Fazemos parte de uma equipe multidisciplinar, em que a quebra de um elo faz todo o trabalho desandar. O enfermeiro detém o cuidar, a gente fala que o médico trata e o enfermeiro cuida, o médico passa muito menos tempo na cabeceira do paciente, porque ele prescreve uma medicação, um tratamento, mas quem fica administrando e monitorando esse paciente é a enfermagem. A gente precisa ser reconhecido pelo compromisso que temos”, garante Sandra. “Ganhamos um reconhecimento da sociedade, com a pandemia, mas precisamos avançar com o nossa valorização profissional”, completa Taciana.
Carta Capital
0 comentários