Luiz Hélio Alves*
Antes mesmo do paladar é através dos sentidos do olfato e da visão que somos rendidos ante uma comida posta à nossa frente. E isso acontece mesmo quando não se trata tão somente do essencial ato de matar a fome no intuito de conseguir a energia corporal necessária pra nos manter vivos.
A referência em questão é mais dentro da lógica estética – e do touche de raffinement – propagada pela alta culinária. Não à toa, os chefs se transformaram em verdadeiros artistas criadores dos mais refinados (e carérrimos!!!) pratos tão admirados pela granfinagem metida a besta. É preciso dizer, porém, que em alguns exemplos a aparência vale mais do que o cheiro e o sabor. Dane-se.
Óbvio que não recuso um jantar sofisticado, mas ainda prefiro uma generosa porção de baião de dois com queijo coalho e pequi enquanto delicioso elemento de toda uma cultura tatuada em mim desde a tenra infância através de cheiros, sabores e luminosas memórias eternizadas no coração pelo saudoso e verdejante vale do cariri, mais precisamente entre as utópicas e inspiradoras cidades do Crato e do Juazeiro do Norte.
Se o heroico leitor dessa pretensa resenha de um livro expressivamente sublime ainda não entendeu porra nenhuma até aqui, saiba que não lhe tiro a razão. Mas calma, não desista ainda e seja um pouco mais paciente. Digo, persistente. É que eu só estava ganhando tempo a fim de criar coragem pra chegar ao ponto que interessa, tentar algum êxito nessa difícil missão que me atrevi de vontade própria – e, admito, também por todo um sentimento fraternal e de carinho (re)despertado pelo autor. Algo que esteve adormecido (sabe-se lá porque cargas d’água!) durante uns lamentáveis anos de uma certa, digamos, árida relação mútua. Enfim, gosto dessa coisa de gostar de mudar as situações chatas e sem sal da nossa curta existência e mais ainda dos instigantes desafios. Isso faz lembrar o que dizem os filósofos das cátedras e dos botecos: a (semi)velhice realmente nos torna um pouco mais sábios e com pouca paciência pra perder o nosso precioso tempo com bobagens.
Por isso que ousei escrever algumas pretensas relevantes letras sobre o recém lançado livro desse poetaço que atende pelo codinome Lupeu. Mais do que um apelido, uma popular entidade anarcosequiçosacra. Sem especificamente apelar ao clássico exagero típico dos nascidos sob a regência do astro rei e guiados pelas energias astrais do primeiro quadrante onde estão posicionados os arianos (ou talvez sim, exagerado mas com aquela evidente certeza dos certos de que não estão errados. Ao menos não neste caso), declaro sem pestanejar que essa obra trata-se exatamente daquilo que um leitor exigente espera de um livro espontaneamente parido já com a nobre pecha de grandioso, além de justo candidato a definitivo, a eterno. Esteticamente é um livro primoroso desde as flamejantes cores rubro-negras às fascinantes ilustrações de toques surrealistas que compõem o belo projeto gráfico assinado com a impressionante maestria do artista plástico cearense Reginaldo Farias.
Das impressões críticas a respeito do principal ingrediente desse saboroso e ardente livro, qual seja a sua essência poética, revela-se espantosa a fluidez narrativa com que cada palavra é jorrada das inebriantes fontes e instintivas percepções geradoras de overwords por onde naturalmente são conduzidos os diferenciados poetas e prosadores. Numa mistura muito apropriada (e com o preciso esmero típico dos artesãos) da acidez espontânea influenciada pelos principais autores beats e demais benignos malditos com o lirismo colhido nos campos das convivências afetivas ao longo de sua vulcânica jornada, o poeta Lupeu tem a incomum proeza de ser fruto da própria obra e não o contrário. Tem explicação? Aliás, precisa de uma? Vamos lá, então. Foram e continuam sendo os seus escritos que o (trans)formaram, concebendo-o em líteroprotomutante, um homem-poesia, literatura (das boas) em forma de gente. Ele é exatamente o que escreve. Sem uma vírgula a menos. E como a obra sempre vai mais além, não há ponto final nessa história que conta tantas extraordinárias estórias... A reticência é o sinal de que há muita página em branco a ser enfeitada com os abençoados "prosoemas" do próximo e ainda mais fascinante livrolupeu.
Das sensações que “Todo Suicídio é um Homicídio” nos desperta a cada embriagante página tem também o prazer do tato. Com impressão em formato retangular que se pode carinhosamente aninhar na palma da mão (de preferência na esquerda), apresenta-se um objeto perfeito pra fazer despertar aquela maravilhosa sensação que sentimos quando abraçamos um corpo desejado. Alguém vai dizer que isso também pode ser sentido com outros livros. Sim, mas nem todos reúnem em si os múltiplos prazeres despertados por uma leitura especialmente fuderosa.
Voltando ao primeiro parágrafo, esclareço agora que a referência à culinária se deu por um motivo bem singular: essa é uma obra que de imediato – e instintivamente – primeiro arrebata um leitor mais atento pelo “olfativo” título de densa reflexão. “Todo Suicídio é um Homicídio” é uma obra destinada a ser pra sempre e nos faz sentir o cheiro da vida com a urgência que a mesma requer, com a complexidade e plenitude dos nossos sentimentos ante questões existenciais e psicossociais que enfrentamos a cada alvorecer. E de Platão a Schopenhauer, o suicídio é um tema bem complexo, bastante abordado da psiquiatria à filosofia, da psicologia à religião e até da literatura à dramaturgia. Mas engana-se quem espera encontrar nesse magnifico livrolupeu uma espécie de autoajuda com receitas sobre como manter o astral em alta e a motivação cotidiana pra não ser sufocado pelas contradições dos sentimentos que levam alguns à mais intensa desilusão de pensar no impensável ato de tirar a própria vida.
Não, não é sobre isso. É tão somente um alerta temperado de poesia sobre a importância e o sentido da vida. Sentido no que tange o sentir-se potencialmente vivo e também no que se refere aos igualmente preciosos e fundamentais sentidos orgânicos. Aristóteles já tinha dado o toque. “Nada está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos”, enquanto um tal de Nietzsche foi mais direto. “A verdade não se apresenta aos olhos, mas ao nariz”. É essa a verdade que “Todo Suicídio é um Homicídio” nos revela – de maneira forte e direta como tomar três doses seguidas de uísque sem gelo –, mas também com encantadora ternura: o delicioso cheiro de vida em constante e essencial movimento. Até porque viver também é resistir com muita fibra e gosto de malagueta na boca.
Já disseram que “o poeta é a pimenta do planeta”. Lupeu e sua mais nova obra botam pra arder. E pra fuder. Deliciosamente!
*Poeta, escritor e jornalista, Luiz Hélio sonha com um mundo libertário e luta por uma transição socialista.
1 comentário
08 de Apr / 2021 às 09h50
A bíblia diz que os homicidas não entraram no Reino dos céus